segunda-feira, 30 de março de 2020

A Alfândega do Céu: Indulgências em tempo de quarentena


O Governo de Portugal determinou que todos os imigrantes com pedidos de autorização de residência pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) passem a estar em situação regular e a ter acesso aos mesmos direitos que todos os outros cidadãos, incluindo apoios sociais e serviços de saúde. A medida foi divulgada no último dia 28 de março em meio à crise pandêmica de Covid19[1].

A necessidade de uma resposta urgente para a situação dos imigrantes afrouxou a tradicional burocracia. Com menos papelada, os processos foram agilizados. Convém dizer que ao optar por acolher seus “novos cidadãos”, o governo português deu uma resposta humanitária para a situação.

Acolher “sem olhar a quem”, como atitude humanitária e cristã, é um gesto recorrente no ensinamento de Jesus nos Evangelhos. O Samaritano acolhe e cuida da pessoa ferida que encontra pelo caminho, mesmo sem saber quem ela é (cf. Lc 10,25-37). Também o pai misericordioso acolhe e oferece misericórdia ao seu filho que estava perdido, sem inquirir sobre o seu passado pecador (cf. Lc 15,11-32). São gestos gratuitos.

Não faz muito tempo, o papa Francisco despertava a Igreja inteira para essa atitude tão fundamental na vida e missão da Igreja quando promulgava o Ano Santo Extraordinário da Misericórdia. Durante o jubileu, o pontífice parecia ainda insistir na necessidade de desburocratização, de simplificação e gratuidade dentro da Igreja: “É necessário reconhecer que, se uma parte do nosso povo batizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos” (Evangelii Gaudium, n.40). Francisco reiterava que “a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa” (Evangelii Gaudium, n.47; Amoris Laetitia, n.310).

O ano Santo da Misericórdia de 2015-2016, na esteira de outros anos santos, também incluía um referimento as indulgências (cf. Misericordiae Vultus).  

Ora, a compreensão clássica das indulgências está embrenhada no meio de não pouco catoliquês. Para entender a mecânica das indulgências, é preciso conhecer com clareza o dogma da Comunhão dos Santos, a doutrina tradicional da escatologia católica (Céu, Inferno e Purgatório), a catequese e prática do sacramento da Confissão (Reconciliação), e então, e só então, a doutrina das indulgências. Com efeito, a história e o significado das indulgências são marcados pela contradição. O conflito entre Martinho Lutero e a Igreja Católica, por exemplo, envolve a prática das indulgências. O próprio papa Leão X, ao condenar a Reforma de Lutero na bula Exsurge Domine, reconhece os erros da Igreja sobre essa prática. No Concílio Vaticano II, havia quem opinava a favor da supressão de sua prática.

Mas coube a São Paulo VI tentar encontrar uma saída saudável e moderna para essa doutrina. Seus esforços estão contidos no documento Indulgentiarum Doctrina. Montini buscou simplificar um pouco as coisas. Excluiu, por exemplo, a lógica dos dias de perdão de purgatório que se podia lucrar com as indulgências. A Igreja passou a falar apenas de indulgência plenária (uma espécie de liquidação completa das penas dos pecados) e de indulgência parcial (a quitação de uma parcela do saldo de pena dos pecados, mas de forma não mensurável ou tangível tão precisa como antes).

Não obstante, o papa Paulo VI derrapava ainda no ensinamento de que o acesso ao Céu só se dava depois do completo acerto de contas das penas dos pecados perdoados. Mesmo desburocratizada, a alfândega permanecia. As indulgências funcionavam ainda como uma proposta de cumprimento de certas práticas piedosas com o interesse de lucrar a remissão das penas e ganhar o tão almejado green-card do Céu para si ou para os falecidos. Nessa lógica, a Igreja, gerenciadora competente para autorizar a “Ficha Limpa” do fiel, estabelece as condições para o “visa ok” do passaporte da beatitude eterna.
     

De qualquer forma, na prática pastoral, o exercício das indulgências foi prudentemente desestimulado apesar da promulgação do documento Enchiridion Indulgentiarum.

Nesse tempo da crise pandêmica de Covid19 que atingiu de forma grave também a Itália, a Penitencial Apostólica – órgão do Vaticano responsável pelas indulgências - emitiu um decreto no dia 19 de março concedendo indulgências especiais “aos fiéis atingidos pela Covid-19, em geral conhecida como Coronavírus, assim como aos profissionais da saúde, aos familiares e a todos aqueles que cuidam deles de qualquer maneira, inclusive através da oração[2]”.



Como se vê, os destinatários do decreto são muitos. Abrangência dos envolvidos, flexibilização das condições e empatia com os que mais sofrem com a pandemia são traços de desburocratização do acesso a Deus. O movimento de desburocratização e simplificação da reconciliação do ser humano com Deus proposta pela Igreja levaram a própria Penitenciária a recordar a possibilidade dos fiéis acertarem as contas diretamente com Deus, mesmo sem a confissão e absolvição sacramental. Afinal de contas, nesse tempo de quarentena, a prática católica viu-se gravemente prejudicada. A gratuidade e a infinitude do alcance da Misericórdia de Deus ficam assim mais visíveis.

O próprio papa Francisco, por conta da pandemia, concedeu a extraordinária benção Urbi et Orbi com indulgência plenária para todos os que acompanharam o momento. O seu gesto foi acolhido pela humanidade inteira como comovente e consolador, mesmo pelos que não tinham interesse ou clareza sobre a indulgência envolvida; Diga-se a verdade: a maioria dos católicos que rezaram com o papa.
Durante essa crise, o medo da morte e a sensação de um fim próximo, criam um ambiente favorável para uma tentação muito real: se concentrar na vaga de uma recompensa de vida após a morte, ao invés de viver plenamente, com as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje (cf. Gaudium et Spes).

A pandemia do Coronavirus nos apela a escolher pela vida (Cf. Dt 30,19). Todos nós, a humanidade inteira, estamos diante da oportunidade de exercer compaixão, de crescer em fé, de agir com bondade, de redescobrir o amor e a alegria do que é simples e essencial na vida. Não é hora de nos burocratizarmos em rituais institucionais (ao vivo ou pela internet) para ganhar a entrada no Céu através de alguns portões de alfândega sagrada. Portões esses que não são os de isolamento social que somos chamados a fazer (#FiqueEmCasa), mas portões que nos isolam da realidade.

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