sexta-feira, 20 de março de 2020

Resposta da liturgia católica diante do tempo de quarentena



A fé é sempre a mesma e simultaneamente é fonte de luzes sempre novas[1]
(cf. Mt 13,52)
epidemia de Covid-19, a exigência de isolamento, a impossibilidade de contato e a exposição à morte têm provocado em nós medo, angústia, terror e desespero. Ao mesmo tempo, o imaginário da proximidade do fim leva à descoberta do que é essencial na vida e desperta coragem, esperança e dedicação no cuidado e proteção.  Não podemos impedir a pandemia do vírus, mas podemos dar uma resposta individual e comunitário à realidade que enfrentamos. Essa resposta também perpassa a liturgia católica.
fragilidade do nosso modelo clerical – em que a mediação do padre torna-se central para a celebração da fé - está diante de nós, em sua impotência e teimosa arrogância. Formamos uma Igreja que celebra a fé num nível sacramentalista que pouco valoriza a ministerialidade laical. Volvamos nosso olhar para a radicalidade do sacerdócio batismal que certamente nos levará a intuir respostas criativas e aliviará os ombros "heroicos" dos presbíteros. Dito de outro modo, estamos num “jejum quaresmal de missas e demais sacramentos”. Nesse momento, os contextos de nossas casas – para os que têm uma casa onde se isolar - são muitos e diversos. O velho jeito de celebrar os sacramentos, particularmente a Eucaristia (Missa) já não responde à realidade. Por aí há famílias inteiras – em suas mais diversas configurações, pessoas sozinhas, idosos, crianças, pessoas que não saem mais de casa, pessoas que ainda precisam sair, mas não gostariam, pessoas que precisam sair para salvar os outros e não podem voltar, pessoas que passam 90% de seu tempo no hospital... Que resposta temos a elas?

A verdade é que nós nunca experimentamos uma profunda adaptação litúrgica. Devemos simplesmente esperar que tudo passe e voltemos aos velhos hábitos de antes? Há um risco de que em vez de novas formas, tenhamos apenas as velhas formas, espalhadas em todos os meios (TV, PC, smartphone, tablet telas gigantes...), quando poderíamos voltar às fontes da Igreja Primitiva: domus ecclesiae.  A celebração da fé poderia voltar a ser doméstica, cotidiana, secular. É uma oportunidade que se apresenta para aprender e ampliar a nossa tradição litúrgica - traditio et redditio, uma outra maneira possível de dar forma à vida das nossas comunidades de fé, que continuam a existir mesmo na ausência de momentos de agregação paroquial e sem padre.
Na simplicidade das casas, podem nascer maneiras de celebrar, rezar, lembrar, buscar a sabedoria das Escrituras para navegar nesses dias incertos, de medo e desconfiança.

A liturgia distante, que se aproxima através da TV ou do streaming ao vivo, permanece irremediavelmente distante. Mesmo que seja celebrada pelo pároco, pelo bispo ou pelo papa. Substitui o nada, e isso com certeza é algo, mas não permite celebrar, de fato. Uma Igreja que conheça a importância decisiva do ato de celebração, deixa de lado a "ligação" e a "conexão" e reconhece a necessidade fundamental da presença, da qual o sentido fundamental é o tato, mas talvez também o olfato, porque é urgente sermos arrancados do isolamento e da solidão.

 Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, e Mauro Festi têm uma importante contribuição sobre esse assunto que passo a reproduzir:  

Se a liturgia é a linguagem de todos os batizados, toda pequena comunidade "em quarentena" deve poder celebrar a Páscoa, sem delegar o ato eclesial a outros. Ela fará isso em comunhão com os santos e com a Igreja, mas terá que fazer isso por si só. Portanto, a dimensão familiar - reduzida àquele mínimo de família que é cidadão individual e fiel em seu apartamento - poderá e terá que entrar na dinâmica da palavra e do sacramento. E terá que fazer isso com o corpo, com todos os seus sentidos, não apenas com a vista faminta de imagens sagradas na tela. Uma "dieta dos olhos" e um "alimento substancioso" dos outros sentidos serão a lógica de uma Igreja que está dispersa, mas que não se perde, que é fracionada, mas não fragmentada, que é apartada, mas não isolada, mas sim consolada pela linguagem comum que atravessa os corpos, aquece os corações e nutre as mentes. O anúncio da ressurreição, enquanto evento corporal, pressupõe uma Igreja que saiba ainda dar a palavra ao seu próprio corpo integral. Isso é esperança. Mesmo neste tempo dilatado e ameaçador, que preocupa e aflige, mas abre novos passos possíveis, necessários e talvez decisivos.

A Ceia do Senhor nas Igrejas domésticas
Vamos tentar, no horizonte do que foi expresso até agora, imaginar como poderíamos celebrar a Ceia do Senhor em nossas casas, como autênticas Igrejas domésticas.
Deixamo-nos guiar pela liturgia, adaptando-a aos nossos contextos. É apenas um exemplo possível de "enraizamento" da liturgia eclesial em nosso mundo e modo de vida.

a. "Em sua glória" (Contemplação da cruz da glória)

A liturgia nos faria começar com um cântico inspirado nesta antífona de entrada:
Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. (cf. Gal 6,14)

Poderíamos preparar um canto específico da casa, que se torna um pouco único no tríduo e durante toda o tempo da Páscoa, para colocar de maneira estável um crucifixo significativo, por valor afetivo, por valor estético ou porque feito em família.
Poderíamos começar nos reunindo ali, se possível com luzes mais suaves (mantendo-as assim o tempo todo), não antes de começar a cair à noite.

Poderíamos contemplar a cruz cantando um refrão com as palavras da antífona, se a conhecemos, ou com palavras semelhantes, ou proclamando-as. Poderíamos compartilhar, inclusive criando-o, um refrão ad hoc, de simples beleza, como comunidade paroquial ou como diocese, e fazê-lo circular para conseguir aprendê-lo a tempo.
Poderíamos encontrar palavras breves para orientar a contemplação em direção ao esplendor da glória, e sentir que a glória de Deus na cruz de Cristo tem a ver com seu peso na história, inclusive a nossa. Poderíamos então cantar o cântico da glória para confessar o louvor a Deus que em Cristo vem para tornar nossa história uma história de salvação. Poderíamos alternar um refrão do glória, com expressões de louvor que ecoem situações da história da salvação em que a glória do Senhor se manifestou e com as quais se possa perceber que nossa situação tem semelhança.

b. "Guarde a nossa vida" (rito de custódia do mal: a porta)

Naquele mesmo "canto especial", poderíamos colocar um jarro, talvez transparente, cheio de água.
Poderíamos buscar água nele e levar para um de nossos lugares mais "carregados" de problemas, de mal. Como os judeus, a soleira, a porta da frente. Não podemos atravessá-la, porque lá fora está o mal; dentro, ao contrário, a segurança da vida. Os judeus fizeram um gesto apotropaico, espargindo a soleira com o sangue do cordeiro que depois eles consumiriam. Poderíamos lavar os batentes da porta e a maçaneta com a água, realizando um gesto que estamos repetindo com frequência neste momento para nos proteger, mas oferecendo-lhe um contexto diferente, que o ressignifica, expondo-o à presença de Deus, para que esse mesmo gesto tenha o poder de ressignificar qualquer outra "lavagem" que faremos na vida cotidiana. "Vamos marcar" a soleira da casa com a água que recebemos da contemplação da glória de Cristo na cruz e da confissão de seu peso na história, que se faz esperança de fazer dele experiência na nossa.

Poderíamos acompanhar o gesto com uma parte do Sl 121:
Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro?
O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.
O Senhor te guardará de todo mal; ele guardará a tua alma.
O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre.

Essa mesma água (que será reposta quando acabar) poderia ser a mesma água para encher a jarra para o jantar e, portanto, beber durante a ceia, e a mesma água para lavar as mãos antes de sentar mesa, talvez usando uma bacia e sabão.
É a mesma água e a mesma bacia com a qual será vivido o lava-pés. A mesma bacia e a mesma água poderiam encontrar um lugar em nosso canto especial, ao lado do jarro com água limpa. Como água "carregada" pela passagem salvífica de Deus, não será jogada fora, mas será guardada, pelo menos durante a época da Páscoa.

Ao atravessar a soleira, voltando para casa, pode-se narrar, em breve, a ceia judaica: como Deus pediu aos judeus que espargissem os marcos das portas de suas casas com sangue, para defendê-los do extermínio da morte, hoje nós os purificamos com a água da vida, invocando a mesma proteção.
Lavamos as mãos. Buscamos a água para colocar na mesa.

c. "Admita-nos no banquete do seu reino" (rito de aliança)

Poderíamos nos sentar à mesa, começando a ceia "abençoando a mesa" com a citação de Apocalipse (3,20; 22,20):
O Senhor diz: Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo.
R. Venha, Senhor Jesus.

Inicia-se a ceia. É importante que seja uma ceia onde a ênfase possa ser colocada no pão e no vinho. Seria bom se o pão fosse preparado em casa, talvez juntos, e fosse suficiente para o dia seguinte. Diante do pão e do vinho, compartilhando-os e degustando-os, poderíamos nos ajudar mutuamente a descobrir quantas relações, quanto trabalho, quanta natureza, quanta providência, quanta Escritura há neles. E quando se chega a perceber - conversado, talvez até com histórias "do passado", trocando essas palavras cheias de gratidão e admiração - que está sendo tocada a dimensão da aliança, proclama-se a história da instituição em 1Cor 11, 23- 26.

d. "para que possamos ter parte com você" (rito de custódia do mal: amor até o fim)

Após a proclamação do relato da ceia, uma lavagem mútua dos pés poderia ser realizada (deixando a ceia ali onde está ...). Como se sentíssemos a urgência de agir na mesma lógica da aliança que nos faz experimentar o pão, o vinho e o relato. Aquele que conduz a oração se levanta, vão pegar uma toalha, tira água do jarro e pega a bacia e pede para poder lavar os pés dos outros membros da família, que talvez poderiam nem saber do gesto. Lava os pés com o sabão, beija-os e lava-os novamente com sabão (para não causar contágio). Mas, pelo menos assim, finalmente, se pode voltar a dar um beijo, advertindo-o não perigoso, mas é vital dizer até que ponto a vida do outro me importa, até que ponto a vida do outro importa a Deus, e quero que seja afastada das garras do mal. Se o contexto permitir, pode-se, de fato, viver o gesto com reciprocidade, para que cada um possa acessar novamente esse com-tato essencial, ressignificado cristologicamente. O tempo em que entramos, com nossa "quarentena", não é um tempo apressado; portanto, a ceia e o próprio ato do lava-pés podem não ser tão estilizados a ponto de se tornem insignificantes; pode levar todo o tempo, simbólico e poético, necessário.

Depois de ter realizado o lava-pés, pode-se proclamar o Evangelho (Jo 13, 1-15) e deixar um pouco de silêncio, para que as sensações, pensamentos e percepções relacionadas ao que está sendo vivenciado possam emergir dentro de si.

silêncio poderia então se abrir e se tornar intercessão, para todos aqueles com quem nos preocupamos e que gostaríamos de lavar para preservar do mal e alcançar com nosso beijo de amor e dedicação, de bênção e eternidade. Essas orações seriam então reunidas na oração fundamental, do Pai nosso, onde é Ele quem acolhe nossas vidas em suas mãos, libertando-nos do mal.

e. Entramos na noite, acompanhados pelo perfume (rito de entrada na noite)

O canto "especial" da casa, que é importante seja um pouco "isolado", percebido como diferente, pode se tornar um local importante para acompanhar o tempo da Páscoa como chave de acesso ao tempo da ameaça da pandemia. Permanecem ali a cruz, a Sagrada Escritura, o jarro com água "pura" e a bacia com a água que purificou. Ali, no final da ceia, se pode colocar o pão para o dia seguinte, aquele pão que hoje está cheio de sentido, e deverá ser capaz de dar sentido também ao drama do dia seguinte.

Ali, uma vela perfumada é acesa e deixada queimando enquanto a casa é reorganizada, após a ceia, para que o perfume se espalhe.
No início da ceia, se pode suspender o uso dos vários meios de comunicação e entrar em um silêncio de profundidade.
Depois da arrumação, prontos para ir para a cama, poder-se-ia reunir, em silêncio, neste canto sagrado da casa, deixando entrar em si o brilho da luz da vela, enquanto todas as outras luzes são apagadas e o perfume se espalha. Poderíamos nos dar o boa noite ali, retomando o Salmo 121, na íntegra:

Levanto os meus olhos para os montes e pergunto:
De onde me vem o socorro?
O meu socorro vem do Senhor,
que fez os céus e a terra.
Ele não permitirá que você tropece;
o seu protetor se manterá alerta,
sim, o protetor de Israel não dormirá,
ele está sempre alerta!
O Senhor é o seu protetor;
como sombra que o protege, ele está à sua direita.
De dia o sol não o ferirá,
nem a lua, de noite.
O Senhor o protegerá de todo o mal,
protegerá a sua vida.
O Senhor protegerá a sua saída e a sua chegada,
desde agora e para sempre.

Poder-se-ia terminar com o Glória ao Pai, confiar-se à intercessão materna de Maria e apagar a vela, tomando cuidado antes que o percurso para chegar aos quartos no escuro seja facilmente praticável. Assim, será possível entrar na noite que prepara a morte, acompanhados pelo perfume que consegue habitá-la mesmo quando a última luz se apaga.

Sites consultados:


[1] http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_19921011_fidei-depositum.html

Um comentário:

Aloir Pacini sJ disse...

Seu trabalho é cheio de graça... que bom ter pessoas como você neste mundo e fazermos a nossa parte para vivermos segundo o Evangelho de Jesus Cristo.