Uma coisa precisa ficar muito clara no início desse relato: Não
pense os indígenas como povos isolados, sem contato, hábitos e costumes
próprios da cultura do não-índio. São pouquíssimas as etnias indígenas que
vivem isoladas, sem sofrerem fortes influências do jeito de viver do homem
branco.
Fui às terras indígenas junto com
Aloir, SJ e Adauto. O motivo da nossa viagem foi fazer uma perícia para a
justiça federal. O assunto é sério. Trata-se de uma disputa judiciária entre
fazendeiros locais e indígenas da etnia Pareci pelas terras daquela parte do
cerrado mato-grossense. A pergunta era: De quem é a terra? Nosso objetivo era
ajudar a justiça federal na definição dessa questão delicada. Eu fui como assistente
do Pe. Aloir, SJ.
Chegamos à aldeia Hanawarikô na
segunda-feira, dia quatro, pela manhã. Procuramos pelo cacique de nome João –
meu xará. Os índios costumam ter um “nome de branco” para documentos e relações
com os não-índios, mas também têm um nome na língua nativa que falam. João
reuniu a comunidade da aldeia no espaço que também funciona como igreja
evangélica – essa aldeia foi convertida anos atrás por um casal de pastores.
Nós nos apresentamos. A conversa foi curta. O cacique disse que não poderíamos
fazer trabalho algum sem a presença da FUNAI. Não importava se estávamos em
nome da justiça federal, nem qualquer papel ou documento que mostrássemos. Um
dos índios abriu o carro em que viemos para assegurar que não portávamos nenhum
armamento. Aos poucos fomos nos dando conta da situação em que estávamos. Nos
mandaram aguardar até a chegada da FUNAI. Disponibilizaram-nos uma casa que era
usada apenas para guardar coisas e receber visitas de pessoas brancas – a
grande maioria dos índios prefere morar dentro das ocas. Quando anunciamos que
íamos à cidade mais próxima, disseram que não podíamos deixar a aldeia.
Estávamos sem comunicação, já que não havia sinal de celular, não nos deixavam
usar o telefone via rádio que tinham e nos proibiram de usar computadores.
Estávamos presos.
A partir desse momento, de quando
em quando, um índio vinha à casa onde nos hospedaram para assegurar-se que não
estávamos usando o computador ou com a intenção de deixar a aldeia. Nos
entretinham com histórias e causos que contavam. Durante as refeições que eram
feitas em outra casa, um deles sempre nos acompanhava. As horas demoraram a
passar. A situação ficou um pouco mais tensa quando, no cair da tarde, teimamos
em usar o computador e isso irritou o indígena que nos vigiava. Ele ameaçou nos
tomar os computadores. Aguardamos, então, até a chegada do representante da
FUNAI que aconteceu no dia seguinte, duas horas depois do almoço. Ele precisava
fazer alguma consulta antes de iniciarmos a perícia. E isso significa que
precisaria usar o telefone. Nós o acompanhamos até um lugar onde era possível
usar celular, apesar de que a rede de dados de internet ainda não funcionava.
Então, fiz um discernimento: usei o telefone para mandar SMS´s para minha
família – fazia tempo que não mandava esse tipo de mensagem – mas preferi não
comentar sobre o episódio da aldeia, só iria despertar preocupação e as coisas
já estavam se resolvendo. De volta à aldeia, depois de uma boa conversa, o
impasse foi resolvido: os trabalhos iriam começar. Fim do cativeiro.
No dia seguinte, seis de
dezembro, pela manhã, começamos nossa rota acompanhados de alguns índios Pareci
e do representante da FUNAI. Fomos em dois carros aos locais pertinentes à
perícia. Aloir foi no carro da FUNAI. Eu fui no carro com Adauto. Conosco foi uma
personagem ilustre que me marcou profundamente nesses dias: Dona Julia, índia Pareci
de 75 anos. Já tinha percebido a vitalidade e a presença marcante dessa senhora
quando chegamos à aldeia. Ela é filha de um personagem importante para a cultura
e a região local, tem autoridade de uma matriarca, ou melhor, cacique e possui em
sua personalidade os traços de quem é forte e doce ao mesmo tempo. Dona Júlia
entrou no carro falante e enérgica, sempre acompanhada de seu marido. Toda a
nossa conversa no carro foi gravada e ela falou com a espontaneidade e
simplicidade que lhe são típicas. Ela disse que Deus fez a terra e que o homem
branco não era dono da terra. Disse que antigamente não tinha fazendeiro nem
branco onde moram. Chegamos ao nosso primeiro destino: à proximidade das
nascentes do rio Juininha, divisa da terra indígena Uirapuru. O rio tinha uma
água barrenta. Dona Julia explicou que não era assim antigamente.
Havia uma razão
para aquilo a poucos quilômetros dalí e, no dia seguinte, fomos ver
pessoalmente o que prejudicava e irritava os espíritos das águas do rio Juininha.
Era uma enorme erosão causada pela construção da rodovia BR-364...
Depois, visitamos vários vestígios
de aldeias antigas. Os índios nos diziam “cemitérios” e isso porque o povo Pareci
enterra seus mortos dentro da casa onde a pessoa vivia. Muitas vezes, quando a
morte do ente querido causa grande tristeza para a aldeia, os Pareci optam por
mudar a aldeia de lugar e demoram anos para voltar a ocupar o antigo
território. Daí que encontrar um cemitério era o mesmo que encontrar uma antiga
habitação indígena.
A presença de Dona Julia foi
muito importante para entendermos a memória do que por ali se passou. Visitamos
uma aldeia velha em que Dona Julia tinha morado antes de ter sido expulsa de lá
pelo administrador da fazenda da região - personagem que conheceríamos no dia
seguinte. Ela entrou na antiga oca onde morava, passou os olhos pelo lugar,
quando avistou uma antiga frigideira, jogada num canto e esquecida pela pressa
da fuga. Tomou-a na mão, tirou um pouco de terra de dentro, olhou para mim, e
disse, com jeito envergonhado, que levaria consigo sua frigideira. Eu acenei
que sim. Ela foi até o carro da FUNAI para guardá-la, enquanto continuávamos a
perícia.
No dia sete, nossas visitas se
centraram a outras aldeias da região. Conhecemos outros índios Pareci que por ali
vivem. Nosso objetivo era conversar com os mais velhos e resgatar os fatos que
para nós precisavam ser esclarecidos. Era como montar um quebra-cabeça com os
pedaços das recordações e dos relatos que nos eram contados. Nossas chegadas as
aldeias sempre chamavam a atenção dos seus habitantes.
Conhecemos a aldeia Juininha,
onde um rapaz bem jovem exercia a função de cacique. Ali haviam dois índios Pareci
bem idosos com quem gravamos entrevistas. Apesar deles falarem português, o
jovem cacique traduziu as perguntas para a língua pareci, de modo que os
anciãos pudessem melhor compreender e responder as questões. Os mais velhos são
verdadeiras bibliotecas de informações e histórias do passado. A transmissão da
cultura oral é uma marca forte dos povos indígenas. Descobrimos que o “batizado”
ou nomeação de um Pareci é feito depois que uma pessoa dentre os mais velhos
sonha o nome. Acredita-se que é um espírito que vem e revela o nome da criança.
Outras aldeias, encontros, conversas
e entrevistas nos conduziram até o final daquele dia e adentro da manhã
seguinte, do dia oito. Depois, fomos até a sede de uma das fazendas da região
para conversa com o gerente do local. Estávamos diante de um velho conhecido
dos índios Pareci e às voltas com os conflitos dessa disputa; homem branco,
calças largas, ostentava grossas correntes douradas nos pulsos e no pescoço,
donde pendia uma grande e sinistra cruz também dourada e um outro adereço que
não consegui identificar. Defendeu os fazendeiros.
Voltamos para a aldeia Hanawarikô,
onde estávamos hospedados. Nos aproximávamos do encerrando dos trabalhos da
perícia. Dona Julia estava vestida com um belo vestido verde, também pendurou no
pescoço seus longos cordões – sinal de sua autoridade - e nos levou à cabeceira
do rio Juína, onde ainda hoje eles vão para tomar banho e larvar roupas. É um
lugar bonito e de águas limpas.
Ao longo desses dias, fui me
acostumando com algumas coisas próprias dessa experiência. Agora mesmo, por
exemplo, enquanto escrevo esse trecho do texto – são três da madrugada -, uma
pequena rã pulou na coberta com que me cubro e, ao perceber que dei-me conta de
sua presença, ela pulou para algum lugar longe o suficiente para que eu não mais
possa vê-la. Porcos, cachorros, insetos, gaviões, caranguejeiras, antas,
galinhas, seriemas, macacos, tatus,... formaram todos parte do cenário dessa
viagem.
Hoje, mais cedo, depois do
jantar, a filha de Dona Julia, acompanhada de outra Pareci me procuraram para dar-me
um presente de despedida. Ganhei um colar com um peixe talhado em tucum. Fiquei
feliz com o agrado. Era sinal de paz e de cordialidade. Tenho consciência que o
mal-entendido que ocorreu na nossa chegada se deu porque esses Pareci vivem
numa situação de tensão, medo e insegurança por suas terras. O medo gera
desconfiança e a desconfiança nos leva a agir de modo a nos proteger do que é
estranho, e eu entendo isso. Os Pareci de Hanawarikô tem ainda muito o que
viver e o que lutar. Espero que a justiça contribua na garantia de seus
direitos tradicionais.