segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Do cativeiro ao presente de despedida: Meus dias no Aldeia indígena Hanawarikô

Uma coisa precisa ficar muito clara no início desse relato: Não pense os indígenas como povos isolados, sem contato, hábitos e costumes próprios da cultura do não-índio. São pouquíssimas as etnias indígenas que vivem isoladas, sem sofrerem fortes influências do jeito de viver do homem branco.

Fui às terras indígenas junto com Aloir, SJ e Adauto. O motivo da nossa viagem foi fazer uma perícia para a justiça federal. O assunto é sério. Trata-se de uma disputa judiciária entre fazendeiros locais e indígenas da etnia Pareci pelas terras daquela parte do cerrado mato-grossense. A pergunta era: De quem é a terra? Nosso objetivo era ajudar a justiça federal na definição dessa questão delicada. Eu fui como assistente do Pe. Aloir, SJ.

Chegamos à aldeia Hanawarikô na segunda-feira, dia quatro, pela manhã. Procuramos pelo cacique de nome João – meu xará. Os índios costumam ter um “nome de branco” para documentos e relações com os não-índios, mas também têm um nome na língua nativa que falam. João reuniu a comunidade da aldeia no espaço que também funciona como igreja evangélica – essa aldeia foi convertida anos atrás por um casal de pastores. Nós nos apresentamos. A conversa foi curta. O cacique disse que não poderíamos fazer trabalho algum sem a presença da FUNAI. Não importava se estávamos em nome da justiça federal, nem qualquer papel ou documento que mostrássemos. Um dos índios abriu o carro em que viemos para assegurar que não portávamos nenhum armamento. Aos poucos fomos nos dando conta da situação em que estávamos. Nos mandaram aguardar até a chegada da FUNAI. Disponibilizaram-nos uma casa que era usada apenas para guardar coisas e receber visitas de pessoas brancas – a grande maioria dos índios prefere morar dentro das ocas. Quando anunciamos que íamos à cidade mais próxima, disseram que não podíamos deixar a aldeia. Estávamos sem comunicação, já que não havia sinal de celular, não nos deixavam usar o telefone via rádio que tinham e nos proibiram de usar computadores. Estávamos presos.


A partir desse momento, de quando em quando, um índio vinha à casa onde nos hospedaram para assegurar-se que não estávamos usando o computador ou com a intenção de deixar a aldeia. Nos entretinham com histórias e causos que contavam. Durante as refeições que eram feitas em outra casa, um deles sempre nos acompanhava. As horas demoraram a passar. A situação ficou um pouco mais tensa quando, no cair da tarde, teimamos em usar o computador e isso irritou o indígena que nos vigiava. Ele ameaçou nos tomar os computadores. Aguardamos, então, até a chegada do representante da FUNAI que aconteceu no dia seguinte, duas horas depois do almoço. Ele precisava fazer alguma consulta antes de iniciarmos a perícia. E isso significa que precisaria usar o telefone. Nós o acompanhamos até um lugar onde era possível usar celular, apesar de que a rede de dados de internet ainda não funcionava. Então, fiz um discernimento: usei o telefone para mandar SMS´s para minha família – fazia tempo que não mandava esse tipo de mensagem – mas preferi não comentar sobre o episódio da aldeia, só iria despertar preocupação e as coisas já estavam se resolvendo. De volta à aldeia, depois de uma boa conversa, o impasse foi resolvido: os trabalhos iriam começar. Fim do cativeiro.

No dia seguinte, seis de dezembro, pela manhã, começamos nossa rota acompanhados de alguns índios Pareci e do representante da FUNAI. Fomos em dois carros aos locais pertinentes à perícia. Aloir foi no carro da FUNAI. Eu fui no carro com Adauto. Conosco foi uma personagem ilustre que me marcou profundamente nesses dias: Dona Julia, índia Pareci de 75 anos. Já tinha percebido a vitalidade e a presença marcante dessa senhora quando chegamos à aldeia. Ela é filha de um personagem importante para a cultura e a região local, tem autoridade de uma matriarca, ou melhor, cacique e possui em sua personalidade os traços de quem é forte e doce ao mesmo tempo. Dona Júlia entrou no carro falante e enérgica, sempre acompanhada de seu marido. Toda a nossa conversa no carro foi gravada e ela falou com a espontaneidade e simplicidade que lhe são típicas. Ela disse que Deus fez a terra e que o homem branco não era dono da terra. Disse que antigamente não tinha fazendeiro nem branco onde moram. Chegamos ao nosso primeiro destino: à proximidade das nascentes do rio Juininha, divisa da terra indígena Uirapuru. O rio tinha uma água barrenta. Dona Julia explicou que não era assim antigamente.


Havia uma razão para aquilo a poucos quilômetros dalí e, no dia seguinte, fomos ver pessoalmente o que prejudicava e irritava os espíritos das águas do rio Juininha. Era uma enorme erosão causada pela construção da rodovia BR-364...


Depois, visitamos vários vestígios de aldeias antigas. Os índios nos diziam “cemitérios” e isso porque o povo Pareci enterra seus mortos dentro da casa onde a pessoa vivia. Muitas vezes, quando a morte do ente querido causa grande tristeza para a aldeia, os Pareci optam por mudar a aldeia de lugar e demoram anos para voltar a ocupar o antigo território. Daí que encontrar um cemitério era o mesmo que encontrar uma antiga habitação indígena.

A presença de Dona Julia foi muito importante para entendermos a memória do que por ali se passou. Visitamos uma aldeia velha em que Dona Julia tinha morado antes de ter sido expulsa de lá pelo administrador da fazenda da região - personagem que conheceríamos no dia seguinte. Ela entrou na antiga oca onde morava, passou os olhos pelo lugar, quando avistou uma antiga frigideira, jogada num canto e esquecida pela pressa da fuga. Tomou-a na mão, tirou um pouco de terra de dentro, olhou para mim, e disse, com jeito envergonhado, que levaria consigo sua frigideira. Eu acenei que sim. Ela foi até o carro da FUNAI para guardá-la, enquanto continuávamos a perícia.


No dia sete, nossas visitas se centraram a outras aldeias da região. Conhecemos outros índios Pareci que por ali vivem. Nosso objetivo era conversar com os mais velhos e resgatar os fatos que para nós precisavam ser esclarecidos. Era como montar um quebra-cabeça com os pedaços das recordações e dos relatos que nos eram contados. Nossas chegadas as aldeias sempre chamavam a atenção dos seus habitantes. 

Conhecemos a aldeia Juininha, onde um rapaz bem jovem exercia a função de cacique. Ali haviam dois índios Pareci bem idosos com quem gravamos entrevistas. Apesar deles falarem português, o jovem cacique traduziu as perguntas para a língua pareci, de modo que os anciãos pudessem melhor compreender e responder as questões. Os mais velhos são verdadeiras bibliotecas de informações e histórias do passado. A transmissão da cultura oral é uma marca forte dos povos indígenas. Descobrimos que o “batizado” ou nomeação de um Pareci é feito depois que uma pessoa dentre os mais velhos sonha o nome. Acredita-se que é um espírito que vem e revela o nome da criança.


Outras aldeias, encontros, conversas e entrevistas nos conduziram até o final daquele dia e adentro da manhã seguinte, do dia oito. Depois, fomos até a sede de uma das fazendas da região para conversa com o gerente do local. Estávamos diante de um velho conhecido dos índios Pareci e às voltas com os conflitos dessa disputa; homem branco, calças largas, ostentava grossas correntes douradas nos pulsos e no pescoço, donde pendia uma grande e sinistra cruz também dourada e um outro adereço que não consegui identificar. Defendeu os fazendeiros.

Voltamos para a aldeia Hanawarikô, onde estávamos hospedados. Nos aproximávamos do encerrando dos trabalhos da perícia. Dona Julia estava vestida com um belo vestido verde, também pendurou no pescoço seus longos cordões – sinal de sua autoridade - e nos levou à cabeceira do rio Juína, onde ainda hoje eles vão para tomar banho e larvar roupas. É um lugar bonito e de águas limpas.


Ao longo desses dias, fui me acostumando com algumas coisas próprias dessa experiência. Agora mesmo, por exemplo, enquanto escrevo esse trecho do texto – são três da madrugada -, uma pequena rã pulou na coberta com que me cubro e, ao perceber que dei-me conta de sua presença, ela pulou para algum lugar longe o suficiente para que eu não mais possa vê-la. Porcos, cachorros, insetos, gaviões, caranguejeiras, antas, galinhas, seriemas, macacos, tatus,... formaram todos parte do cenário dessa viagem.


Hoje, mais cedo, depois do jantar, a filha de Dona Julia, acompanhada de outra Pareci me procuraram para dar-me um presente de despedida. Ganhei um colar com um peixe talhado em tucum. Fiquei feliz com o agrado. Era sinal de paz e de cordialidade. Tenho consciência que o mal-entendido que ocorreu na nossa chegada se deu porque esses Pareci vivem numa situação de tensão, medo e insegurança por suas terras. O medo gera desconfiança e a desconfiança nos leva a agir de modo a nos proteger do que é estranho, e eu entendo isso. Os Pareci de Hanawarikô tem ainda muito o que viver e o que lutar. Espero que a justiça contribua na garantia de seus direitos tradicionais.


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Igreja: lugar do chá maluco de Alice no país das Maravilhas

“Havia uma mesa arrumada embaixo de uma árvore, em frente à casa, e a Lebre de Março e o Chapeleiro estavam tomando chá” (CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. In: Versão para eBook: eBooksBrasil.com, 2002, capítulo VII, p. 63).

É um episódio conhecido de todos nós. E eu particularmente adoro chás! Em meio a sua jornada, Alice se aproxima da casa da Lebre de Março. Lá, embaixo de uma árvore, avista uma mesa posta. É hora do chá! A Lebre de Março, o Chapeleiro Maluco e um Leirão estão à hora do chá.

As linhas citadas no primeiro parágrafo podem nos fazer imaginar um lugar formidável: embaixo de uma árvore, uma sombra fresca, uma brisa leve e um clima agradável. Normalmente, quando estamos embaixo de uma árvore frondosa e acolhedora, nos encontramos em um espaço de descanso e de aconchego. Muitos de nós, inclusive, escolhemos a sombra das árvores como lugar para piqueniques e isso me parece uma escolha acertada porque, afinal de contas, muitas árvores são frutíferas e isso, por si só, já sugere que embaixo de seus galhos, seja lugar de refeição. Árvores podem frutificar e dar alimento para a manutenção e o revigorar da vida. E essa ideia nos remete à mitológica Árvore da Vida das narrativas bíblicas: “No meio da praça e em ambas as margens do rio cresce a árvore da vida, frutificando doze vezes por ano, produzindo cada mês o seu fruto, e suas folhas servem para curar as nações” (Ap 22,2). Gosto de pensar a árvore da qual Alice se aproximou para encontrar a mesa de chá como uma árvore especial, como uma árvore acolhedora e de vida. Acho que não poderia ter cenário melhor para que acontecesse aquele chá.  

Outro detalhe que faz a imaginação fluir é o fato de que a mesa está em frente à casa. Não está distante dela. Aprontar a mesa abaixo da árvore e em frente à casa não foge ao ambiente familiar. Embora não seja dentro da casa, é dentro do espaço do “lar”, isto é, do ambiente de convivência e referência da Lebre de Março e também do Chapeleiro.

Pergunto: Por que optaram por tomar chá embaixo da árvore em frente à casa ao invés de ficarem na sala ou na cozinha, dentro da casa? O livro não revela esse detalhe, mas podemos imaginar, pela descrição de Lewis que o clima se fazia propício para estar ao ar livre. Talvez fosse oportuno um chá “campal” que os liberasse da cotidianidade do ambiente do edifício-casa. Isso não significa que a Lebre de Março e o Chapeleiro abandonaram a casa, ou melhor, o que ela representa – E o que será que ela representa?. Afinal, se fosse assim, o autor preferiria descrever um chá no meio da floresta ou em qualquer outro lugar distante da frente da casa e da agradável sombra da árvore de seu quintal da frente. Parece, então, mais com uma opção consciente da Lebre de Março e também do Chapeleiro de tomar chá fora de casa e, mesmo assim, permanecer ainda em casa.

É preciso perceber que esse gesto revela uma escolha mais do que “maluca”. Ela cria novas condições para se fazer o que sempre se fez de uma forma inédita. É repetir a atitude de tomar chá de uma maneira inovadora. E note-se: não é preciso abandonar a casa para ter essa atitude criativa. Na verdade, foi necessário que a Lebre de Março e também o Chapeleiro olhassem para a concretude da realidade onde vivem – a casa e o quintal em frente dela, e a tarefa que iriam realizar – tomar chá, e, daí, generosos em disponibilidade e abertura, pensassem criativamente: Um chá Maluco (título do capítulo VII da obra de Carroll). A maluquice do chá começa justamente na ambientação inovadora em que ele ocorre.

Uma atitude de resistência enrijecida que insistisse em tomar chá dentro de casa, mesmo com o sol brilhando lá fora, seria também uma atitude de fechamento... se estivessem dentro de casa, trancados às tradicionais normas e conveniências de tomar chá dentro de casa, talvez Alice nunca tivesse encontrando-os sentados à mesa. Com efeito, uma atitude de enrijecimento gera desencontros e fecha portas para que outros descubram a mesa onde nos achegamos. O trancar-se dentro da segurança da estrutura da casa para a sagrada hora do chá, hora da convivência, hora de dividir a bebida do mesmo bule com os outros, exclui os que poderiam ser nossos companheiros e convidados.

Igreja tem mais haver com tomar chá embaixo de árvore do que dentro de casa. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Vicente Cañas: O julgamento que fez justiça


Depois de dois dias de juízo no Tribunal do Júri da Justiça Federal em Cuiabá, Mato Grosso (Brasil), o delegado Ronaldo Antônio Osmar, o único acusado vivo em idade legal de ser julgado pelo assassinato do missionário jesuíta Vicente Cañas, conhecido pelos indígenas como Kiwxi, foi declarado culpado por negligência e envolvimento no assassinato do missionário espanhol. O delegado teria contratado os pistoleiros para ceifar a vida de Kiwxi no dia 6 de abril de 1987, mediante pagamento por parte dos fazendeiros interessados nas terras dos Enawenenawe, comunidade indígena com quem o jesuíta vivia.

O conselho de sentença (júri), formado por 4 homens e 3 mulheres, considerou o acusado culpado dos delitos de colaboração direta e planejamento de emboscada, o que resultou na sua  condenação a 14 anos e três meses de prisão em regime fechado, podendo responder em liberdade, visto que já vive assim nos últimos 30 anos.

Por aqueles dias, o Irmão Vicente Cañas foi avisado das ameaças feitas e dos perigos que passava, por isso veio discretamente a Cuiabá para encaminhar os trabalhos e voltou com um peixe assado pelo Darci Pivetta como matula -comida para viagem - no ônibus para não precisar descer na viagem de retorno. Kiwxi não tirava férias junto da família para não deixar os Enawenenawe sozinhos.

Durante o Júri estiveram presentes três sobrinhas e um sobrinho do Irmão Vicente vindos da Espanha, os indígenas Enawenenawe, Mÿky, Rikbaktsa, Chiquitanos, Nambikwara, Boe (Bororo) e numerosos representantes da Igreja que trabalha com os indígenas. 

A defesa buscava demonstrar que a morte não foi violenta, mas natural, causada por uma úlcera que, na verdade, nunca existiu. Ela também chegou a insinuar que foram os Enawenenawe que mataram Vicente Cañas. A culpabilização das vítimas é algo odioso no Brasil e que infelizmente se repete até os dias de hoje. Quando a defesa começou a culpar o próprio Vicente Cañas e os indígenas Enawenenawe, ela se perdeu. Suas contradições foram aparecendo e as mentiras foram cuidadosamente demonstradas. Daí que abandonaram essa tentativa no segundo dia de júri.

Quando o profeta Daniel (capítulo 13, versículos 1 a 65) defendeu Susana da acusação da classe dominante da sua época e a livrou da pena de morte, deixou a lição de que Deus auxilia os inocentes e mostrou que a iniquidade prejudica quem a comete. Deus fica indignado com o pecador empedernido que não O teme o O desafia como se fosse imune à lei que impõe sobre os demais. A bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que nos convida ao Natal também nos convida a rever nossa vida, refletir sobre nossos atos e a nos convertermos todos os dias.

O juiz, citando Virgílio, falou durante o Júri: “O tempo leva tudo, até mesmo a memória!”. De fato, o processo auxiliou a preservar a memória dos indígenas nesta terra do Mato Grosso e o que estava escondido foi proclamado acima dos telhados (cf. Mt 10,27). 

Quando os indígenas Rikbaktsa testemunharam que o matador teria falado que desafiava o Irmão Vicente Cañas “Você vai morrer no lugar dos índios!”, aquilo dizia para nós, hoje, algo a mais da vida deste mártir: que assim como Jesus doou sua vida na morte de Cruz, Vicente é semente de vida nova para os povos nativos.

Noutro momento, a testemunha Fausto Campoli esclareceu que os Enawenenawe conviviam com o Irmão Vicente como um deles, o tratavam dentro de suas normas e que Kiwxi pertencia a um dos clãs deles. Uma vez morto, o sepultaram segundo os seus rituais e o "canonizaram" como Enorenawe, um ser celestial.
Campoli contou ainda que Cañas ia subir para a aldeia onde morava no dia seguinte da data de seu martírio. Ele estava no seu Barraco, ponto de apoio, junto ao rio Juruena. Vicente planejava subir para a aldeia dos Enawenenawe, mas subiu para a aldeia dos céus, tornou-se mais um santo mártir da Igreja Católica.

Um dos milagres de Vicente Cañas… A Justiça tarda, mas não falha!

Pe. Aloir Pacini, SJ
Adaptação e acréscimos João Melo

sábado, 11 de novembro de 2017

Peregrinos na Colômbia: Jovens testemunhos de amizade e reconciliação


Entre os dias 29 de outubro e 08 de novembro, eu, João Melo (Sinop, MT) e outros três brasileiros, Ayla Tapajós (Santarém, PA), Diego Barbosa (Fortaleza, CE) e Bruno Victor (Campinas, SP) estivemos na Colômbia para participar junto com jovens de todas as partes do país da #ClaveriadaValle2017. 



Nos primeiros dias de nossa peregrinação ficamos na cidade capital, Bogotá. Os museus, as praças, cada arquitetura das casas e edifícios, cada busto, estátua e placa nos contavam a história daquele país que ainda desconhecíamos. Havia mais. As pessoas que nos acompanhavam pela cidade e as com quem nos encontrávamos pelo caminho, novos amigos, nos contavam ainda mais, e nos contavam com a vida, o que é Colômbia. Respirávamos Colômbia toda vez que, onde é que pausássemos o olhar, as verdes montanhas que subiam ao horizonte nos contavam que estávamos em terras estrangeiras. Os grafites que coloriam os muros da cidade nos contavam das manifestações artísticas e de resistência juvenil contra o sistema que sustém a desigualdade social. Os rostos dos trabalhadores que, como milhares de brasileiros e brasileiras, tomavam os ônibus cheios na volta do trabalho, os venezuelanos, imigrantes, que ali buscavam uma vida melhor, todos eles, nos contavam que Colômbia e Brasil partilham de problemas e desafios iguais.  Havia mais do vizinho país latino-americano para ver. A rica culinária, os ritmos musicais como a salsa e o reggaeton nos contavam que o povo colombiano é alegre, festivo e sabe dançar maravilhosamente. E em tudo isso, o coração como que sussurrava “ver Deus em todas as coisas”. E todas as coisas nos contavam algo da Colômbia.   

Assim, descobrimos, pouco a pouco, que o lugar que nos acolhia é um país de história forte e intensa. Descobrimos também que o conflito e a guerra marcaram os últimos 50 anos dessa nação e que agora há um esforço enorme sendo empreendido para alcançar a paz.  

Na pequena cidade de Buga, Valle del Cauca, entre os dias 3 a 6 de novembro, nos encontramos com mais de 250 jovens para a #ClaveriadaValle2017cujo tema foi “Jóvenes testigos de amistad y reconciliación”, que em português seria: “Jovens testemunhos de amizade e reconciliação”.  E para nós, Delegação Brasil, foi isso mesmo que a Claveriada 2017 significou. 



Testigos: Testemunharam a nós os jovens da Claveriada. Testemunharam que não querem mais um país mergulhado no conflito e na violência. Testemunharam que apesar de suas diferenças regionais – o que seguramente os faz ainda mais ricos culturalmente -  e de suas opiniões diversas, desejam uma nação mais justa, humana e pacífica. Testemunharam a esperança.  

Amistad: Não importa o tempo de convivência e sim a intensidade do que sentimos. Amizade são laços afetivos e efetivos que construímos no caminhar da vida e que tornam os passos mais leves, mais risonhos e com mais sentido. MAGIS. Nós, da Delegação Brasil, tão pouco nos conhecíamos antes da Claveriada 2017. Mas nossa amizade é um fruto bonito e que cresceu rápido porque resulta de corações abertos e desejosos de encontros. Movemo-nos e nos deixamos mover rumo ao novo que nos era tão familiar, construindo novos laços de amizade além-fronteiras. 

Reconciliación: A reconciliação é expressão da misericórdia e do amor. Quem ama reconcilia. Os jovens colombianos que se identificam com a espiritualidade inaciana mostraram na Claveriada o desejo de em tudo amar e servir, de reconciliação consigo mesmo, com os outros e com a Casa Comum. Mais. Mostraram que tudo isso não é um palavrório bonito, mas que reconciliação é compromisso com a construção de uma realidade social e política mais solidária e fraterna.   
    
O evento juvenil marcado por muita animação e alegria incluiu momentos de convivência, oração pessoal, partilhas, palestras, oficinas, apresentações culturais, eucaristia diária e uma peregrinação até a Basílica menor del Señor de los Milagros de Buga.  

Nossa viagem terminou na cidade de Cali, onde nos reencontramos com vários jovens que participaram da Claveriada 2017 e que estudam em colégios e universidades da Companhia de Jesus. Foi bonito ver que a missão da Companhia junto a essas instituições educativas não se limita a sustentar outras obras da Companhia que carecem de recursos financeiros. Essa experiência nos ensina que é preciso acolher e assumir os colégios e universidades como lugares de presença junto as juventudes. Alegrou-me muito ver os jesuítas que trabalham nessas instituições serem tão próximos das juventudes, misturados a elas, encontrando-as pelos corredores e com muita familiaridade trocando algumas palavras, tendo suas salas abertas, onde os jovens sentem-se acolhidos, convidados a entrar, passar um tempo, gastar o intervalo entre uma aula e outra. PRESENÇA.  

A Red Juvenil Ignaciana da Colômbia é quem articula e organiza a Claveriada. Somos muito gratos a todos os que trabalham nela por terem nos proporcionado tamanha experiência que, concluímos, é uma experiência de Deus. 

terça-feira, 6 de junho de 2017

Reflexões que educam para o sentido de receber a comunhão na mão


A Solenidade de Corpus Christi nos ensina o valor da Eucaristia. 
O roteiro a seguir, pode ser usado por grupos reunidos para reflexão, 
oração, adoração ao Santíssimo, e catequese. 
Pode ainda ser usado na procissão de Corpus Christi, caso haja paradas. 

As reflexões nos educam para o sentido de receber a comunhão na mão. 

Elas nos falam de VOCAÇÃO, PARTILHA e CUIDADO COM A CASA COMUM.   




1º Deixar-se tocar pelo Senhor
Leitor 1: O Evangelho narra que, caminhando em meio à multidão, Jesus pergunta: “Quem me tocou?” (Mc 5,30). Tinha sido uma mulher. Uma mulher de fé que, na verdade, antes de tocar o Senhor, já tinha se deixado tocar por Ele (cf. Mc 5,27). Ainda hoje Jesus repete a pergunta: “Quem me tocou?”. Quem de nós O toca? Quem de nós já se deixou tocar por Ele?
/:Toca Senhor/ toca Senhor,/ com Teu Amor,/ com Teu Amor/:
Leitor 2: Ser tocado e poder tocar o Senhor é experiência de encontro com Jesus. E esse encontro muda tudo. Transforma a nossa vida e desperta em nós o desejo de sermos pessoas melhores. É quando nos tornamos discípulos Dele. É dom e graça de Deus. É vocação.
/: Eis me aqui Senhor,/ eis me aqui Senhor/ pra fazer tua vontade, pra viver no seu amor/ pra fazer sua vontade, pra viver no seu amor/ eis me aqui Senhor!/:
Leitor 3: Jesus, no grande desejo de se deixar tocar e se fazer próximo de nós, fez-se alimento. Fez-se Eucaristia: pão e vinho, corpo e sangue. As mãos que traçam o Sinal da Cruz sobre o corpo são as mesmas mãos que tocam o Senhor na Eucaristia... Estendemos as nossas mãos para o padre ou o ministro da Eucaristia num gesto de quem busca tocar o Senhor. Então, com respeito e reverência, recebemos a hóstia santa em nossas mãos e dela comungamos: É o Senhor quem agora nos toca! É Ele o Santo Alimento para nossa vida e vocação cristã.    
/: Te amarei, Senhor!/ Te amarei, Senhor!/ Eu só encontro a paz e a alegria bem perto de ti!/:

2º “Tive fome e me deste de comer” (Mt 25,35)

Leitor 1: Eucaristia é banquete, é festa, é fartura! Numa boa festa não falta comida. Na Mesa do Senhor não há quem passe fome. Todos são convidados e têm seu lugar à mesa do altar. Como pode, então, haver entre nós irmãos e irmãs que ainda passam fome?

/: Igualdade, fraternidade, nesta mesa nos ensinais/ as lições que melhor educam, na Eucaristia é que nos dais!/:

Leitor 2: “Tive fome e me deste de comer” (Mt 25,35), diz Jesus no Evangelho. Nós, cristãos, que tomamos parte do banquete do sacrifício do Senhor somos chamados à solidariedade e à partilha fraterna. A Eucaristia é gesto de amor do Cristo que se doa a nós como alimento. O mesmo Cristo que nos ensinou o amor ao próximo. E proximidade é tocar, ensina o papa Francisco; e não somente tocar a Eucaristia com nossas mãos, mas tocar no próximo a carne de Cristo.

/:Eu vim para que todos tenham vida/ que todos tenham vida plenamente!/:

Leitor 3: As mãos que recebem a Eucaristia são as mesmas mãos que trabalham e estão à serviço da vida nova para todos. Quantas vezes nossas mãos levaram um alimento bendito para quem tinha fome? Quantas vezes fez um carinho, um afago e consolo para quem precisava? Que nossas mãos sejam benditos instrumentos de paz e solidariedade fraterna. Que a Eucaristia nos torne irmãos que sabem partilhar o que tem.    

/:Importa viver Senhor,/unidos no amor;/na participação,/vivendo em comunhão!:/

 


3º Eucaristia: dom da Mãe Terra
Leitor 1: Quando completou toda a obra da Criação, Deus viu que tudo que havia feito era muito bom (cf. Gn 1,31). A bonita diversidade dos biomas requer da nossa parte zelo e cuidado com a Casa Comum. Deus criou todas as plantas e todas as árvores frutíferas, inclusive os trigais e as videiras. Dons da Terra, trigo e uva são transformados, pelo trabalho das mãos de homens e mulheres, em pão e vinho. Sem os dons do trigo e da uva, frutos da Mãe Terra, não há Eucaristia.
/: Da Amazônia até os Pampas,/ do Cerrado e aos Manguezais,/ chegue a ti o nosso canto/ pela vida e pela paz/:
Leitor 2: Na Missa, durante o ofertório, o padre reza com o cálice nas mãos: “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo vinho que recebemos de vossa bondade, fruto da videira e do trabalho do homem, que agora vos apresentamos e para nós se vai tornar vinho da salvação”. As mesmas mãos que fazem pão e vinho, são as mãos que tomam o pão eucarístico.
/: O Pão da vida, a comunhão,/ nos une a Cristo, e aos irmãos,/ e nos ensina a abrir as mãos,/ para partir, repartir o pão/:
Leitor 3: A Casa Comum é como um grande altar onde o Senhor opera sua força redentora. Como reza o salmista, “o Senhor alimenta o seu povo com a flor do trigo, e com o mel do rochedo o sacia” (Sl 80,17). Da natureza, a humanidade inteira tira o seu sustento para a vida. Da natureza, trigo e uva são transformados em pão e vinho de salvação: Eucaristia.  
/: Dá-nos, Senhor, esses dons, essa luz,/ e nós veremos que Pão é Jesus/:

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Pentecostes: Renovação da Confirmação

Pe. Gregório Lutz

Gostamos de tudo que é novo. A palavra  “novo” é como que uma força mágica. Tudo deve ser novo: O vestido e a camisa, a casa e o carro, até o sabor do café.  Nada se vende, se não é novo; pelo menos a embalagem deve ser nova. Também em outros campos da nossa vida, aquilo que é novo exerce uma atração fascinante: As novas descobertas, as novas conquistas no campo da ciência, da técnica, da medicina. Tudo deve renovar-se constantemente. A Igreja não é isenta desta euforia do novo: Renovação bíblica, renovação litúrgica, renovação carismática...
                  E esta tendência para tudo que é novo, não é recente, não é moderna. Lembremos só que Jesus selou com seu sangue um novo testamento, uma nova aliança; nós somos o novo Israel, o novo povo de Deus.
                  Na liturgia o desejo de renovação e a exortação para se renovar são fortes e frequentes. O sentido de toda ação litúrgica, de comemorar ou fazer memória, de atualizar ou tornar presente um fato histórico passado, não é no fundo também um renovar?
                  Mas, também num sentido explícito e formal a liturgia realiza e celebra renovação: Renovação das promessas batismais, especialmente na Vigília pascal: “Terminados os exercícios da Quaresma, renovemos as promessas do nosso batismo”. Na Missa do Crisma, o bispo se dirige aos presbíteros com estas palavras: “Filhos caríssimos,  ... quereis renovar  as promessas que um dia fizestes perante o vosso bispo e o povo de Deus?” Sempre mais  entendem-se também os jubileus do casamento ou da profissão religiosa como renovação de um compromisso uma vez assumido. Que tudo isso é legítimo e de maneira alguma novidade, nos mostra a 2ª carta de São Paulo a Timóteo (1,6): “Eu te exorto a reavivar o dom de Deus que há em ti pela imposição das minhas mãos”.


                  Estas palavras, que evidentemente dizem respeito ao sacramento da ordem, poderiam ser literalmente  aplicadas também ao sacramento da Confirmação. Ora, que dia do ano seria mais indicado para tal renovação do sacramento da Confirmação do que a festa de Pentecostes? Sem dúvida, Pentecostes, a festa em que comemoramos a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja nascente, se presta melhor do que qualquer outro dia para renovar também o dom do Espírito que nos foi dado no sacramento da Confirmação.
                   É claro que as formas desta renovação podem ser as mais diversas, desde um momento comemorativo dentro da missa festiva de Pentecostes ou numa hora do Ofício Divino, até uma celebração própria. Não existem limites para a criatividade dos que querem reavivar o grande Dom de Deus. O Lecionário da Missa nos abre profusamente o tesouro da Sagrada Escritura de textos sobre o Espírito Santo.
                  Como todas as renovações de um sacramento, também esta não se deve restringir à celebração litúrgica, mas devemos celebrar aquilo que estamos vivendo e a festa da renovação nos deve dar força para vivermos com novo fervor e mais intensidade a vida daquele Espírito que renova a face da terra.

     Perguntas para reflexão pessoal ou em grupo:
1.      Como vivi minha confirmação desde que fui crismado?   
2.      Como posso renovar minha “vida no Espírito”?

3.      Como e com que elementos rituais eu gostaria de celebrar a renovação do sacramento da Crisma que recebi?

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Ungidos pelo Espírito, enviados em missão



Tema: Ungidos Espírito, enviados em missão


É preciso que os jovens sejam sensibilizados para a realidade simbólica do Sacramento da Confirmação e reflitam sobre para que serve ser crismado.Esse encontro de catequese com jovens que se preparam para a Crisma tem esse objetivo. É um encontro que explora os sentidos humanos, aborda o rico significado do óleo do Crisma e convida os jovens a olharem para si e para a necessiadade de estar em missão.






Instruções para Download
 APÓS CLICAR NO LINK ACIMA, AGUARDE 5 SEGUNDOS E CLIQUE EM ‘FECHAR PROPAGANDA’ 



  2º AGUARDE ALGUNS INSTANTES E CLIQUE NO BOTÃO "BAIXAR ATRAVÉS DO NAVEGADOR", COMO MOSTRA A IMAGEM ABAIXO






  3º SELECIONE A PASTA ONDE QUER SALVAR O ARQUIVO PDF DO ENCONTRO 

domingo, 23 de abril de 2017

São Jorge é sim santo da Igreja!

  Ele é Santo Católico, mas têm gente que tem reservas em venerá-lo. Bobagem!

Certa vez, alguém perguntou sobre o porquê das paróquias não celebrarem a memória de São Jorge na liturgia do dia 23 de Abril.
Ocorre que, muitas vezes, o dia 23 de abril cai em plena oitava da Páscoa, quando nenhuma festa de santo, memória obrigatória ou facultativa pode ser celebrada. Os dias seguintes a Ressurreição de Jesus estendem a Solenidade da Páscoa do Senhor. Outras vezes, o dia 23 de Abril cai em um dos Domingos da Páscoa, dia em que também não é  celebrada a memória de santos.
Além disso, depois da reforma litúrgica pós-conciliar do Vaticano II, a festa litúrgica de São Jorge e de outros santos tornou-se facultativa, isto é, pode ou não ser celebrada, de acordo com a devoção do povo local. Igrejas e locais que têm São Jorge como patrono, podem celebrá-lo em caráter de festa solene no dia de sua memória.

Outros ficam na dúvida se São Jorge existiu  mesmo...

Os tempos difíceis em que os primeiros cristãos viveram não nos permitem ter fontes seguras de que São Jorge existiu, pois o que temos é apenas um pequeno e comprometido “fio” histórico na vida do Santo que consta, dentre outras obras, nos manuscritos cópticos  - que em português há uma edição pela Sá Editora recolhida pelo historiador Ernest A. Wallis Budge. Esses textos que narram o martírio e milagres de São Jorge da Capadócia nos mostram um jovem fiel a sua fé em Cristo que sofre até a morte. Um jovem mártir, testemunho e herói da fé. Embora o texto seja repleto de simbologias e alegorias, trata de mostrar de forma clara que historicamente o “dragão” com que São Jorge luta é o imperador Diocleciano. A narrativa vale a pena, é cristológica! Jorge revela o discípulo que segue de forma apaixonada o caminho de Jesus Cristo! Nunca teremos certeza se o jovem soldado Jorge que desertou de seu posto militar pela fé em Cristo e por Ele deu a vida, verdadeiramente existiu. É verdade também que jovens que tenham queimado éditos de condenação contra cristãos e por isso e por outras razões tenham sido perseguidos e feitos mártires, não devem ter faltado. Se algum deles era soldado e chamava-se Jorge, não se tem certeza, mas a probabilidade é alta! O testemunho dessa comunidade primitiva perseguida ficou. São Jorge é símbolo delas. Portanto, são mesmo necessárias profundas bases históricas para legitimar a memória de um santo dos primórdios da Igreja?

Na Idade Média a história mudou... surgiu a lenda de Jorge e o dragão. Muita confusão foi feita. É tempo de evangelizar e purificar essa devoção, embora ela não esteja totalmente desprovida de sua riqueza evangélica (cf. DAp 262). Essa ideia de “dragão” está presente como um arquétipo na humanidade em diversas culturas, como nos mostram o livro “How to kill a dragon: aspects of Indo-European poetics” de Calvert Watkins e obras da brasileira Rosana Rios. O dragão faz parte. De fato, o livro bíblico de Daniel não é um livro menos deuterocanônico por ter na narrativa um dragão (Dn 14); nem o Apocalipse menos protocanônico (Ap 12); não é “brincadeira de fé”, é a riqueza da narrativa simbólica que é narrativa de fé!

Ao povo brasileiro essa devoção é tão cara que São Jorge figurava entre os intercessores oficiais da JMJ 2013. Quem já esteve na capital do Rio de Janeiro, sabe do que estou falando. São Jorge é patrono de muitos lugares na Europa e na Ásia.
Alguns pensam que é mais fácil abrir mão de um dado não essencial da tradição popular do que purificá-lo. São Jorge é muito mais do que a figura de um mito que luta contra um dragão fictício. Eis, portanto, o tempo favorável para resgatar a figura de um Jorge, jovem soldado cristão que por amor a sua fé em Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado na história humana, prefere perder a vida do que negar a fé. Num mundo onde cristãos na Síria e em tantos outros lugares ainda sofrem a mesma pena, essa devoção ainda encontra pleno sentido se purificada.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Ester e Maria: Rainhas da Fidelidade

“A sua fidelidade, Senhor, permanece de geração em geração” (Sl 119,90)

Uma das virtudes vividas em grau heroico pela Virgem Maria é a fidelidade. A FIDELIDADE é a marca da constância, da solidez dos elos com as pessoas, grupos, instituições e ideais com quem mantemos relações. Ser FIEL significa agir com lealdade, atenção e seriedade e isso é muito diferente de estar sempre de acordo com tudo. A fidelidade opera num nível bem mais elevado. A Bíblia nos mostra isso em alguns relatos. No livro de Gênesis, Putifar encarregou José de cuidar de sua casa: - "O meu senhor, tendo entregue tudo em minhas mãos, não pede contas do que tem em sua casa" (Gn 39,8), diz José à mulher de Putifar ao recusar suas propostas indecentes. Ele é um servo FIEL e não trairia a confiança de Putifar. Mas Putifar também é um marido FIEL. Acreditando na calúnia da mulher, manda prender José (Gn 39,19-20). A virtude da FIDELIDADE por si só não é garantia da ação correta, que exige mais do que boas intenções. É preciso ter também a sabedoria para distinguir o que é correto e ter vontade de fazê-lo.
O filósofo francês Comte-Sponville afirma que

A fidelidade não é um valor entre outros, uma virtude entre outras: ela é aquilo por que, para que há valores e virtudes. Que seria a justiça sem a fidelidade dos justos? A paz, sem a fidelidade dos pacíficos? A liberdade, sem a fidelidade dos espíritos livres? E que valeria a própria verdade sem a fidelidade dos verídicos? Ela não seria menos verdadeira, decerto, mas seria uma verdade sem valor, da qual nenhuma virtude poderia nascer. (...) não há virtude sem fidelidade (Comte-Sponville, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 17).

Para o filósofo, portanto, a fidelidade seria como que uma “força motriz” das outras virtudes e o que a elas dá consistência. A fidelidade necessariamente estaria combinada a outras virtudes e só assim teria sentido.
Com efeito, Nossa Senhora, em razão de sua colaboração na missão de seu Filho e pela ação do Espírito Santo, combina em si uma ditosa pluralidade de virtudes humanas. “Na pessoa da Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição, sem mancha nem ruga, que lhe é própria” (Catecismo da Igreja Católica, n. 829). Nela, FIDELIDADE e as outras virtudes coexistem e superabundam em favor da sua missão. De fato, como afirma o Catecismo da Igreja Católica n. 489, “ao longo da Antiga Aliança, a missão de Maria foi preparada pela missão de santas mulheres. (...) Deus escolheu o que era tido por incapaz e fraco para mostrar a sua fidelidade à promessa feita: Ana, a mãe de Samuel, Débora, Rute, Judite e Ester e muitas outras mulheres. Maria é a primeira entre os humildes e pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem a salvação de Deus”.
Dentre estas Santas Mulheres, a Rainha Ester possuía a virtude da FIDELIDADE que Maria viveu de forma perfeita. Não é à toa que ambas são vistas como “Rainhas e Padroeiras fiéis”. São duas mulheres que protegeram com fidelidade seu povo. Ester foi “padroeira” de Israel. Por sua sábia atitude, conseguiu livrar seu povo do extermínio, devolvendo-lhe a esperança. Maria é padroeira de todas as nações, aquela que inclusive apareceu aos pobres pescadores que serviam aos nobres de Aparecida, devolvendo-lhes a alegria da vida – Ela é também a padroeira do Brasil. Já muito bem aplicava São Alberto Magno a este propósito a história da rainha Ester, que foi prefiguração de Maria, nossa Rainha.
Não é sem razão que a Liturgia da Igreja celebra a Mãe e protetora do povo cristão com a Primeira Leitura tirada do livro de Ester 5,1b-2;7,2b-3 que no Brasil lê-se na Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
No livro bíblico de Ester, são narradas as peripécias dessa mulher judia, filha adotiva do israelita Mardoqueu, que se tornou rainha na corte persa, ao lado do rei Assuero, o Xerxes I (cf. Est 1,9; 2,18).
Rainha Ester - Portal da Virgem, Aparecida SP
(Cláudio Pastro)

No relato recolhido por William J. Bennert[1] dos capítulos 1 e 2 do Livro de Ester, tudo começou por ocasião de um banquete que o rei ofereceu para todos os seus oficiais e servidores. A festa durou uma semana. O pátio estava todo enfeitado com cortinas de algodão brancas e azuis, amarradas com cordões de fino linho vermelho, que estavam presos por argolas de prata a colunas de mármore. O piso era feito de ladrilhos azuis, de mármore branco, de madrepérola e de pedras preciosas. Nesse pátio havia sofás de ouro e de prata. Os convidados tomavam as bebidas em copos de ouro, todos eles diferentes uns dos outros, e o rei mandou que o seu vinho fosse servido à vontade. A rainha Vasti também ofereceu no palácio real um banquete para todas as mulheres dos convidados.
No sétimo dia de banquetes o rei já havia bebido bastante vinho e estava muito alegre. Aí ele mandou chamar os sete eunucos que eram os seus servidores particulares. O rei ordenou que eles fossem buscar a rainha Vasti e que ela viesse com a coroa de rainha na cabeça. Ela era muito bonita, e o rei queria que os nobres e os outros convidados admirassem a sua beleza. Mas a rainha não atendeu à ordem do rei, e por isso ele ficou furioso.
Mais tarde a raiva do rei já havia passado, mas mesmo assim ele continuava a pensar no que Vasti havia feito e no decreto que ele havia assinado contra ela. Aí alguns dos seus servidores mais íntimos lhe disseram: - Rei, mande buscar as mais lindas virgens do reino. Escolha funcionários em todas as províncias e ordene que tragam as moças mais bonitas para o seu harém aqui em Susa, a capital. Egeu, o eunuco responsável pelo harém real, tomará conta delas e fará que recebam um tratamento de beleza. E então, ó Rei, que a moça que mais lhe agradar seja a rainha no lugar de Vasti. O rei gostou da ideia e fez o que lhe sugeriram.
Em Susa morava um judeu chamado Mardoqueu, filho de Jair e descendente de Simei e de Quis, da tribo de Benjamim. Quando o rei Nabucodonosor, da Babilônia, levou de Jerusalém como prisioneiro o rei Joaquim, de Judá, Mardoqueu estava entre os prisioneiros que foram levados com Joaquim. Mardoqueu levou consigo a sua prima Ester, uma moça bonita e formosa. Os pais dela tinham morrido, e Mardoqueu havia adotado a menina e a tinha criado como se ela fosse sua filha.
Quando o rei mandou anunciar a ordem, muitas moças foram levadas para Susa, a capital, e entregues aos cuidados de Egeu, o chefe do harém do palácio. Uma dessas moças era Ester. Egeu gostou dela, e ela conquistou a simpatia dele. Imediatamente ele começou a providenciar para ela o tratamento de beleza e a comida especial. Arranjou sete das melhores empregadas do palácio para cuidarem dela e colocou Ester e as empregadas nos melhores quartos do harém.
Ester fez conforme Mardoqueu tinha mandado e não disse nada a ninguém a respeito da sua raça e dos seus parentes. Todos os dias Mardoqueu passeava em frente do pátio do harém para saber como Ester estava passando e o que ia acontecer com ela. O tratamento de beleza das moças durava um ano; durante seis meses perfumes de mirra e, no resto do ano, outros perfumes e produtos de beleza.
Terminado o tratamento, cada moça era levada ao rei Assuero. Quando chegava a sua vez de ir do harém até o palácio, cada moça tinha o direito de levar tudo o que quisesse. À tarde ela ia ao palácio e na manhã seguinte ia para outro harém e era entregue aos cuidados de Sasagaz, o eunuco responsável pelas concubinas do rei. Ela não voltava a se encontrar com o rei, a não ser que ele gostasse dela e mandasse chamá-la pelo nome.
Chegou a vez de Ester, filha de Abiail e prima de Mardoqueu, a moça que Mardoqueu tinha criado, a moça que conquistava a simpatia de todos os que a conheciam. Quando chegou a sua vez de se encontrar com o rei, ela levou somente aquilo que Egeu, o eunuco responsável pelo harém, havia recomendado.
Ester foi levada ao palácio para apresentar-se ao rei Assuero no mês de tebete, o décimo mês do sétimo ano do seu reinado. Ele gostou dela mais do que de qualquer outra moça, e ela conquistou a simpatia e a admiração dele como nenhuma outra havia feito. Ele colocou a coroa na cabeça dela e a fez rainha no lugar de Vasti. Depois ele deu um grande banquete em honra de Ester e convidou todos os oficiais e servidores. Ele decretou que aquele dia fosse feriado no reino inteiro e distribuiu presentes que só um rei poderia oferecer.
Assim, Ester, mulher de rara beleza, graça e feminilidade, tornou-se rainha no palácio do opressor. E aconteceu que, mais tarde, o primeiro-ministro do rei Assuero, Amã, sugeriu ao rei que fosse decretado o fim do povo judeu que vivia no império, dizendo-lhe: “Há um povo espalhado por todas as províncias de teu reino, separado entre os povos e obedecendo a leis estranhas, que os outros não conhecem, e que além disso despreza o decreto do rei. Não convém que o rei os deixe tranquilos” (3,8). E assim aconteceu: o rei concordou e autorizou Amã a executar a sua sentença, que rezava: “No dia treze do décimo segundo mês, o mês de Adar, todos os judeus sejam aniquilados e confiscados os seus bens” (3,13). O dia previsto foi escolhido por meio da sorte lançada diante do rei. Ester, sabedora dessa realidade, ofereceu um banquete ao rei Assuero (cf. 7), no qual estava também presente o malvado Amã. Já tomado pelo vinho, o rei, quando viu Ester na sua presença, lhe perguntou com agrado o que lhe vinha pedir: Qual é o teu pedido? Respondeu-lhe a rainha: Meu rei, se em algum tempo achei graça aos teus olhos, concede-me a vida – é o meu pedido – e a vida do meu povo – é o meu desejo (7,3). E Assuero a ouviu e atendeu, ordenando logo que se revogasse a sentença. O rei não só realizou seu desejo, como também mandou enforcar Amã (cf. 7,10).
Santo Afonso Maria de Ligório nos diz que se Assuero, por amor a Ester, lhe concedeu a salvação dos judeus; como poderá, então, Deus, cujo amor por Maria é sem medida, deixar de ouvi-la quando pede pelos pobres pecadores, que a ela se recomendam? 
Nossa Senhora das Estrelas - Pe. Renato, SJ

Ester foi mulher de grande fidelidade porque nunca esqueceu seu povo e seu Deus. Mesma tornando-se Rainha de um povo com cultura e práticas religiosas diferentes das suas, Ester optou por permanecer fiel às suas origens, temente a Deus e cumpridora de Seus mandamentos. A Bíblia sentencia que sua fidelidade era tamanha afirmando que “Ester não mudou de conduta” (Est 2,20).
A Virgem Maria, de forma ainda mais perfeita, foi mulher de grande fidelidade. É invocada sob o título de Virgem Fiel porque permaneceu perseverante ao seu Filho até o fim. Esteve de Belém, na infância, quando adulto e pregador itinerante, até a Cruz com Ele... e além!
A fidelidade faz parte da vocação batismal, isto é, todo cristão é chamado a ser fiel a Cristo. A fidelidade de Ester, de Maria e de todos os batizados não é outra coisa se não resposta à fidelidade de Deus. O Catecismo da Igreja Católica n. 207 diz que “ao revelar o seu nome, Deus revela ao mesmo tempo a sua fidelidade, que é de sempre e para sempre, válida tanto para o passado (“Eu sou o Deus de teu pai” Ex 3,6), como para o futuro (“Eu estarei contigo” Ex 3,12). Deus, que revela o seu nome como sendo “Eu sou”, revela-Se como o Deus que está sempre presente junto do seu povo para o salvar”. Deus é fiel conosco e por isso, somos vocacionados a ser fiéis a Ele.   
A fidelidade possui três dimensões:

ESTER
MARIA
BATIZADOS
Busca
Acorria ao Senhor com orações (Est 14) e jejuns (Est 4,16) quando precisava discernir e tomar decisões
Se pôs a buscar o sentido profundo do Desígnio de Deus n’Ela e para o mundo “Como poderá ser?” (Lc 1,34), perguntou Ela ao Anjo da Anunciação
Conhecimento de si, e da vontade de Deus para a própria vida
Acolhimento
Acolhe com docilidade os conselhos de Mardoqueu (Est 2,19) e de Egeu (Est 2,15), usando de sabedoria para conquistar o rei e enfrentar os desafios da vida na corte
A aceitação: “Eis aqui a serva do Senhor, que sua Palavra se cumpra em mim!” (Lc 1, 38)
Acolher as pessoas e as situações da vida como oportunidades para em tudo amar e servir
Coerência
Intercedeu junto ao rei pelo seu povo, não se esquecendo de suas raízes (cf. Est 7,3) – “Ester não mudou de conduta” (Est 2,20)
É a perfeita discípula missionária – “Primeira cristã”
Viver de acordo com o que se crê. Ajustar a própria vida à fé que se tem adesão


Ester, com a sua atitude, passou para a história como símbolo de fidelidade, de resistência e de fé. Ela libertou o povo oprimido, devolvendo a esperança e a alegria a seu povo, que, com pavor, esperava o dia da morte. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica n. 64: “Serão sobretudo os pobres e os humildes do Senhor os portadores desta esperança. As mulheres santas como Sara, Rebeca, Raquel, Míriam, Débora, Ana, Judite e Ester[2] conservaram viva a esperança da salvação de Israel. Maria é a imagem puríssima desta esperança”. Com Maria podemos aprender como viver a virtude da fidelidade.




[1] William J. Bennert. O livro das virtudes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 460-62.
[2] Grifo nosso