segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Do cativeiro ao presente de despedida: Meus dias no Aldeia indígena Hanawarikô

Uma coisa precisa ficar muito clara no início desse relato: Não pense os indígenas como povos isolados, sem contato, hábitos e costumes próprios da cultura do não-índio. São pouquíssimas as etnias indígenas que vivem isoladas, sem sofrerem fortes influências do jeito de viver do homem branco.

Fui às terras indígenas junto com Aloir, SJ e Adauto. O motivo da nossa viagem foi fazer uma perícia para a justiça federal. O assunto é sério. Trata-se de uma disputa judiciária entre fazendeiros locais e indígenas da etnia Pareci pelas terras daquela parte do cerrado mato-grossense. A pergunta era: De quem é a terra? Nosso objetivo era ajudar a justiça federal na definição dessa questão delicada. Eu fui como assistente do Pe. Aloir, SJ.

Chegamos à aldeia Hanawarikô na segunda-feira, dia quatro, pela manhã. Procuramos pelo cacique de nome João – meu xará. Os índios costumam ter um “nome de branco” para documentos e relações com os não-índios, mas também têm um nome na língua nativa que falam. João reuniu a comunidade da aldeia no espaço que também funciona como igreja evangélica – essa aldeia foi convertida anos atrás por um casal de pastores. Nós nos apresentamos. A conversa foi curta. O cacique disse que não poderíamos fazer trabalho algum sem a presença da FUNAI. Não importava se estávamos em nome da justiça federal, nem qualquer papel ou documento que mostrássemos. Um dos índios abriu o carro em que viemos para assegurar que não portávamos nenhum armamento. Aos poucos fomos nos dando conta da situação em que estávamos. Nos mandaram aguardar até a chegada da FUNAI. Disponibilizaram-nos uma casa que era usada apenas para guardar coisas e receber visitas de pessoas brancas – a grande maioria dos índios prefere morar dentro das ocas. Quando anunciamos que íamos à cidade mais próxima, disseram que não podíamos deixar a aldeia. Estávamos sem comunicação, já que não havia sinal de celular, não nos deixavam usar o telefone via rádio que tinham e nos proibiram de usar computadores. Estávamos presos.


A partir desse momento, de quando em quando, um índio vinha à casa onde nos hospedaram para assegurar-se que não estávamos usando o computador ou com a intenção de deixar a aldeia. Nos entretinham com histórias e causos que contavam. Durante as refeições que eram feitas em outra casa, um deles sempre nos acompanhava. As horas demoraram a passar. A situação ficou um pouco mais tensa quando, no cair da tarde, teimamos em usar o computador e isso irritou o indígena que nos vigiava. Ele ameaçou nos tomar os computadores. Aguardamos, então, até a chegada do representante da FUNAI que aconteceu no dia seguinte, duas horas depois do almoço. Ele precisava fazer alguma consulta antes de iniciarmos a perícia. E isso significa que precisaria usar o telefone. Nós o acompanhamos até um lugar onde era possível usar celular, apesar de que a rede de dados de internet ainda não funcionava. Então, fiz um discernimento: usei o telefone para mandar SMS´s para minha família – fazia tempo que não mandava esse tipo de mensagem – mas preferi não comentar sobre o episódio da aldeia, só iria despertar preocupação e as coisas já estavam se resolvendo. De volta à aldeia, depois de uma boa conversa, o impasse foi resolvido: os trabalhos iriam começar. Fim do cativeiro.

No dia seguinte, seis de dezembro, pela manhã, começamos nossa rota acompanhados de alguns índios Pareci e do representante da FUNAI. Fomos em dois carros aos locais pertinentes à perícia. Aloir foi no carro da FUNAI. Eu fui no carro com Adauto. Conosco foi uma personagem ilustre que me marcou profundamente nesses dias: Dona Julia, índia Pareci de 75 anos. Já tinha percebido a vitalidade e a presença marcante dessa senhora quando chegamos à aldeia. Ela é filha de um personagem importante para a cultura e a região local, tem autoridade de uma matriarca, ou melhor, cacique e possui em sua personalidade os traços de quem é forte e doce ao mesmo tempo. Dona Júlia entrou no carro falante e enérgica, sempre acompanhada de seu marido. Toda a nossa conversa no carro foi gravada e ela falou com a espontaneidade e simplicidade que lhe são típicas. Ela disse que Deus fez a terra e que o homem branco não era dono da terra. Disse que antigamente não tinha fazendeiro nem branco onde moram. Chegamos ao nosso primeiro destino: à proximidade das nascentes do rio Juininha, divisa da terra indígena Uirapuru. O rio tinha uma água barrenta. Dona Julia explicou que não era assim antigamente.


Havia uma razão para aquilo a poucos quilômetros dalí e, no dia seguinte, fomos ver pessoalmente o que prejudicava e irritava os espíritos das águas do rio Juininha. Era uma enorme erosão causada pela construção da rodovia BR-364...


Depois, visitamos vários vestígios de aldeias antigas. Os índios nos diziam “cemitérios” e isso porque o povo Pareci enterra seus mortos dentro da casa onde a pessoa vivia. Muitas vezes, quando a morte do ente querido causa grande tristeza para a aldeia, os Pareci optam por mudar a aldeia de lugar e demoram anos para voltar a ocupar o antigo território. Daí que encontrar um cemitério era o mesmo que encontrar uma antiga habitação indígena.

A presença de Dona Julia foi muito importante para entendermos a memória do que por ali se passou. Visitamos uma aldeia velha em que Dona Julia tinha morado antes de ter sido expulsa de lá pelo administrador da fazenda da região - personagem que conheceríamos no dia seguinte. Ela entrou na antiga oca onde morava, passou os olhos pelo lugar, quando avistou uma antiga frigideira, jogada num canto e esquecida pela pressa da fuga. Tomou-a na mão, tirou um pouco de terra de dentro, olhou para mim, e disse, com jeito envergonhado, que levaria consigo sua frigideira. Eu acenei que sim. Ela foi até o carro da FUNAI para guardá-la, enquanto continuávamos a perícia.


No dia sete, nossas visitas se centraram a outras aldeias da região. Conhecemos outros índios Pareci que por ali vivem. Nosso objetivo era conversar com os mais velhos e resgatar os fatos que para nós precisavam ser esclarecidos. Era como montar um quebra-cabeça com os pedaços das recordações e dos relatos que nos eram contados. Nossas chegadas as aldeias sempre chamavam a atenção dos seus habitantes. 

Conhecemos a aldeia Juininha, onde um rapaz bem jovem exercia a função de cacique. Ali haviam dois índios Pareci bem idosos com quem gravamos entrevistas. Apesar deles falarem português, o jovem cacique traduziu as perguntas para a língua pareci, de modo que os anciãos pudessem melhor compreender e responder as questões. Os mais velhos são verdadeiras bibliotecas de informações e histórias do passado. A transmissão da cultura oral é uma marca forte dos povos indígenas. Descobrimos que o “batizado” ou nomeação de um Pareci é feito depois que uma pessoa dentre os mais velhos sonha o nome. Acredita-se que é um espírito que vem e revela o nome da criança.


Outras aldeias, encontros, conversas e entrevistas nos conduziram até o final daquele dia e adentro da manhã seguinte, do dia oito. Depois, fomos até a sede de uma das fazendas da região para conversa com o gerente do local. Estávamos diante de um velho conhecido dos índios Pareci e às voltas com os conflitos dessa disputa; homem branco, calças largas, ostentava grossas correntes douradas nos pulsos e no pescoço, donde pendia uma grande e sinistra cruz também dourada e um outro adereço que não consegui identificar. Defendeu os fazendeiros.

Voltamos para a aldeia Hanawarikô, onde estávamos hospedados. Nos aproximávamos do encerrando dos trabalhos da perícia. Dona Julia estava vestida com um belo vestido verde, também pendurou no pescoço seus longos cordões – sinal de sua autoridade - e nos levou à cabeceira do rio Juína, onde ainda hoje eles vão para tomar banho e larvar roupas. É um lugar bonito e de águas limpas.


Ao longo desses dias, fui me acostumando com algumas coisas próprias dessa experiência. Agora mesmo, por exemplo, enquanto escrevo esse trecho do texto – são três da madrugada -, uma pequena rã pulou na coberta com que me cubro e, ao perceber que dei-me conta de sua presença, ela pulou para algum lugar longe o suficiente para que eu não mais possa vê-la. Porcos, cachorros, insetos, gaviões, caranguejeiras, antas, galinhas, seriemas, macacos, tatus,... formaram todos parte do cenário dessa viagem.


Hoje, mais cedo, depois do jantar, a filha de Dona Julia, acompanhada de outra Pareci me procuraram para dar-me um presente de despedida. Ganhei um colar com um peixe talhado em tucum. Fiquei feliz com o agrado. Era sinal de paz e de cordialidade. Tenho consciência que o mal-entendido que ocorreu na nossa chegada se deu porque esses Pareci vivem numa situação de tensão, medo e insegurança por suas terras. O medo gera desconfiança e a desconfiança nos leva a agir de modo a nos proteger do que é estranho, e eu entendo isso. Os Pareci de Hanawarikô tem ainda muito o que viver e o que lutar. Espero que a justiça contribua na garantia de seus direitos tradicionais.


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Igreja: lugar do chá maluco de Alice no país das Maravilhas

“Havia uma mesa arrumada embaixo de uma árvore, em frente à casa, e a Lebre de Março e o Chapeleiro estavam tomando chá” (CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. In: Versão para eBook: eBooksBrasil.com, 2002, capítulo VII, p. 63).

É um episódio conhecido de todos nós. E eu particularmente adoro chás! Em meio a sua jornada, Alice se aproxima da casa da Lebre de Março. Lá, embaixo de uma árvore, avista uma mesa posta. É hora do chá! A Lebre de Março, o Chapeleiro Maluco e um Leirão estão à hora do chá.

As linhas citadas no primeiro parágrafo podem nos fazer imaginar um lugar formidável: embaixo de uma árvore, uma sombra fresca, uma brisa leve e um clima agradável. Normalmente, quando estamos embaixo de uma árvore frondosa e acolhedora, nos encontramos em um espaço de descanso e de aconchego. Muitos de nós, inclusive, escolhemos a sombra das árvores como lugar para piqueniques e isso me parece uma escolha acertada porque, afinal de contas, muitas árvores são frutíferas e isso, por si só, já sugere que embaixo de seus galhos, seja lugar de refeição. Árvores podem frutificar e dar alimento para a manutenção e o revigorar da vida. E essa ideia nos remete à mitológica Árvore da Vida das narrativas bíblicas: “No meio da praça e em ambas as margens do rio cresce a árvore da vida, frutificando doze vezes por ano, produzindo cada mês o seu fruto, e suas folhas servem para curar as nações” (Ap 22,2). Gosto de pensar a árvore da qual Alice se aproximou para encontrar a mesa de chá como uma árvore especial, como uma árvore acolhedora e de vida. Acho que não poderia ter cenário melhor para que acontecesse aquele chá.  

Outro detalhe que faz a imaginação fluir é o fato de que a mesa está em frente à casa. Não está distante dela. Aprontar a mesa abaixo da árvore e em frente à casa não foge ao ambiente familiar. Embora não seja dentro da casa, é dentro do espaço do “lar”, isto é, do ambiente de convivência e referência da Lebre de Março e também do Chapeleiro.

Pergunto: Por que optaram por tomar chá embaixo da árvore em frente à casa ao invés de ficarem na sala ou na cozinha, dentro da casa? O livro não revela esse detalhe, mas podemos imaginar, pela descrição de Lewis que o clima se fazia propício para estar ao ar livre. Talvez fosse oportuno um chá “campal” que os liberasse da cotidianidade do ambiente do edifício-casa. Isso não significa que a Lebre de Março e o Chapeleiro abandonaram a casa, ou melhor, o que ela representa – E o que será que ela representa?. Afinal, se fosse assim, o autor preferiria descrever um chá no meio da floresta ou em qualquer outro lugar distante da frente da casa e da agradável sombra da árvore de seu quintal da frente. Parece, então, mais com uma opção consciente da Lebre de Março e também do Chapeleiro de tomar chá fora de casa e, mesmo assim, permanecer ainda em casa.

É preciso perceber que esse gesto revela uma escolha mais do que “maluca”. Ela cria novas condições para se fazer o que sempre se fez de uma forma inédita. É repetir a atitude de tomar chá de uma maneira inovadora. E note-se: não é preciso abandonar a casa para ter essa atitude criativa. Na verdade, foi necessário que a Lebre de Março e também o Chapeleiro olhassem para a concretude da realidade onde vivem – a casa e o quintal em frente dela, e a tarefa que iriam realizar – tomar chá, e, daí, generosos em disponibilidade e abertura, pensassem criativamente: Um chá Maluco (título do capítulo VII da obra de Carroll). A maluquice do chá começa justamente na ambientação inovadora em que ele ocorre.

Uma atitude de resistência enrijecida que insistisse em tomar chá dentro de casa, mesmo com o sol brilhando lá fora, seria também uma atitude de fechamento... se estivessem dentro de casa, trancados às tradicionais normas e conveniências de tomar chá dentro de casa, talvez Alice nunca tivesse encontrando-os sentados à mesa. Com efeito, uma atitude de enrijecimento gera desencontros e fecha portas para que outros descubram a mesa onde nos achegamos. O trancar-se dentro da segurança da estrutura da casa para a sagrada hora do chá, hora da convivência, hora de dividir a bebida do mesmo bule com os outros, exclui os que poderiam ser nossos companheiros e convidados.

Igreja tem mais haver com tomar chá embaixo de árvore do que dentro de casa. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Vicente Cañas: O julgamento que fez justiça


Depois de dois dias de juízo no Tribunal do Júri da Justiça Federal em Cuiabá, Mato Grosso (Brasil), o delegado Ronaldo Antônio Osmar, o único acusado vivo em idade legal de ser julgado pelo assassinato do missionário jesuíta Vicente Cañas, conhecido pelos indígenas como Kiwxi, foi declarado culpado por negligência e envolvimento no assassinato do missionário espanhol. O delegado teria contratado os pistoleiros para ceifar a vida de Kiwxi no dia 6 de abril de 1987, mediante pagamento por parte dos fazendeiros interessados nas terras dos Enawenenawe, comunidade indígena com quem o jesuíta vivia.

O conselho de sentença (júri), formado por 4 homens e 3 mulheres, considerou o acusado culpado dos delitos de colaboração direta e planejamento de emboscada, o que resultou na sua  condenação a 14 anos e três meses de prisão em regime fechado, podendo responder em liberdade, visto que já vive assim nos últimos 30 anos.

Por aqueles dias, o Irmão Vicente Cañas foi avisado das ameaças feitas e dos perigos que passava, por isso veio discretamente a Cuiabá para encaminhar os trabalhos e voltou com um peixe assado pelo Darci Pivetta como matula -comida para viagem - no ônibus para não precisar descer na viagem de retorno. Kiwxi não tirava férias junto da família para não deixar os Enawenenawe sozinhos.

Durante o Júri estiveram presentes três sobrinhas e um sobrinho do Irmão Vicente vindos da Espanha, os indígenas Enawenenawe, Mÿky, Rikbaktsa, Chiquitanos, Nambikwara, Boe (Bororo) e numerosos representantes da Igreja que trabalha com os indígenas. 

A defesa buscava demonstrar que a morte não foi violenta, mas natural, causada por uma úlcera que, na verdade, nunca existiu. Ela também chegou a insinuar que foram os Enawenenawe que mataram Vicente Cañas. A culpabilização das vítimas é algo odioso no Brasil e que infelizmente se repete até os dias de hoje. Quando a defesa começou a culpar o próprio Vicente Cañas e os indígenas Enawenenawe, ela se perdeu. Suas contradições foram aparecendo e as mentiras foram cuidadosamente demonstradas. Daí que abandonaram essa tentativa no segundo dia de júri.

Quando o profeta Daniel (capítulo 13, versículos 1 a 65) defendeu Susana da acusação da classe dominante da sua época e a livrou da pena de morte, deixou a lição de que Deus auxilia os inocentes e mostrou que a iniquidade prejudica quem a comete. Deus fica indignado com o pecador empedernido que não O teme o O desafia como se fosse imune à lei que impõe sobre os demais. A bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que nos convida ao Natal também nos convida a rever nossa vida, refletir sobre nossos atos e a nos convertermos todos os dias.

O juiz, citando Virgílio, falou durante o Júri: “O tempo leva tudo, até mesmo a memória!”. De fato, o processo auxiliou a preservar a memória dos indígenas nesta terra do Mato Grosso e o que estava escondido foi proclamado acima dos telhados (cf. Mt 10,27). 

Quando os indígenas Rikbaktsa testemunharam que o matador teria falado que desafiava o Irmão Vicente Cañas “Você vai morrer no lugar dos índios!”, aquilo dizia para nós, hoje, algo a mais da vida deste mártir: que assim como Jesus doou sua vida na morte de Cruz, Vicente é semente de vida nova para os povos nativos.

Noutro momento, a testemunha Fausto Campoli esclareceu que os Enawenenawe conviviam com o Irmão Vicente como um deles, o tratavam dentro de suas normas e que Kiwxi pertencia a um dos clãs deles. Uma vez morto, o sepultaram segundo os seus rituais e o "canonizaram" como Enorenawe, um ser celestial.
Campoli contou ainda que Cañas ia subir para a aldeia onde morava no dia seguinte da data de seu martírio. Ele estava no seu Barraco, ponto de apoio, junto ao rio Juruena. Vicente planejava subir para a aldeia dos Enawenenawe, mas subiu para a aldeia dos céus, tornou-se mais um santo mártir da Igreja Católica.

Um dos milagres de Vicente Cañas… A Justiça tarda, mas não falha!

Pe. Aloir Pacini, SJ
Adaptação e acréscimos João Melo