“A sua fidelidade, Senhor, permanece de geração em geração” (Sl 119,90)
Uma das
virtudes vividas em grau heroico pela Virgem Maria é a fidelidade. A FIDELIDADE
é a marca da constância, da solidez dos elos com as pessoas, grupos,
instituições e ideais com quem mantemos relações. Ser FIEL significa agir com lealdade,
atenção e seriedade e isso é muito diferente de estar sempre de acordo com
tudo. A fidelidade opera num nível bem mais elevado. A Bíblia nos mostra isso
em alguns relatos. No livro de Gênesis, Putifar encarregou José de cuidar de
sua casa: - "O meu senhor, tendo entregue tudo em minhas mãos, não pede
contas do que tem em sua casa" (Gn 39,8), diz José à mulher de Putifar ao
recusar suas propostas indecentes. Ele é um servo FIEL e não trairia a
confiança de Putifar. Mas Putifar também é um marido FIEL. Acreditando na
calúnia da mulher, manda prender José (Gn 39,19-20). A virtude da FIDELIDADE
por si só não é garantia da ação correta, que exige mais do que boas intenções.
É preciso ter também a sabedoria para
distinguir o que é correto e ter vontade de fazê-lo.
O
filósofo francês Comte-Sponville afirma que
A
fidelidade não é um valor entre outros, uma virtude entre outras: ela é aquilo
por que, para que há valores e virtudes. Que seria a justiça sem a fidelidade
dos justos? A paz, sem a fidelidade dos pacíficos? A liberdade, sem a
fidelidade dos espíritos livres? E que valeria a própria verdade sem a
fidelidade dos verídicos? Ela não seria menos verdadeira, decerto, mas seria
uma verdade sem valor, da qual nenhuma virtude poderia nascer. (...) não há
virtude sem fidelidade (Comte-Sponville, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 17).
Para o filósofo, portanto, a fidelidade seria como que uma “força
motriz” das outras virtudes e o que a elas dá consistência. A fidelidade
necessariamente estaria combinada a outras virtudes e só assim teria sentido.
Com efeito, Nossa Senhora, em razão de sua colaboração na missão de seu
Filho e pela ação do Espírito Santo, combina em si uma ditosa pluralidade de
virtudes humanas. “Na pessoa da Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela
perfeição, sem mancha nem ruga, que lhe é própria” (Catecismo da Igreja Católica, n. 829). Nela, FIDELIDADE e as outras
virtudes coexistem e superabundam em favor da sua missão. De fato, como afirma
o Catecismo da Igreja Católica n. 489,
“ao longo da Antiga Aliança, a missão de Maria foi preparada pela missão de
santas mulheres. (...) Deus escolheu o que era tido por incapaz e fraco para
mostrar a sua fidelidade à promessa feita: Ana, a mãe de Samuel, Débora, Rute,
Judite e Ester e muitas outras mulheres. Maria é a primeira entre os humildes e
pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem a salvação de Deus”.
Dentre estas Santas Mulheres, a Rainha Ester possuía a virtude da
FIDELIDADE que Maria viveu de forma perfeita. Não é à toa que ambas são vistas
como “Rainhas e Padroeiras fiéis”. São duas mulheres que protegeram
com fidelidade seu povo. Ester foi “padroeira” de Israel. Por sua sábia
atitude, conseguiu livrar seu povo do extermínio, devolvendo-lhe a esperança. Maria
é padroeira de todas as nações, aquela que inclusive apareceu aos pobres
pescadores que serviam aos nobres de Aparecida, devolvendo-lhes a alegria da
vida – Ela é também a padroeira do Brasil. Já muito bem aplicava São Alberto
Magno a este propósito a história da rainha Ester, que foi prefiguração de
Maria, nossa Rainha.
Não é sem razão que a Liturgia da Igreja celebra a Mãe
e protetora do povo cristão com a Primeira Leitura tirada do livro de Ester
5,1b-2;7,2b-3 que no Brasil lê-se na Solenidade de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida.
No livro bíblico de Ester, são narradas as peripécias
dessa mulher judia, filha adotiva do israelita Mardoqueu, que se tornou rainha
na corte persa, ao lado do rei Assuero, o Xerxes I (cf. Est 1,9; 2,18).
|
Rainha Ester - Portal da Virgem, Aparecida SP
(Cláudio Pastro) |
No relato recolhido por William J. Bennert dos capítulos 1 e 2 do
Livro de Ester, tudo começou por ocasião de um banquete que o rei ofereceu para
todos os seus oficiais e servidores. A festa durou uma semana. O pátio estava
todo enfeitado com cortinas de algodão brancas e azuis, amarradas com cordões
de fino linho vermelho, que estavam presos por argolas de prata a colunas de
mármore. O piso era feito de ladrilhos azuis, de mármore branco, de madrepérola
e de pedras preciosas. Nesse pátio havia sofás de ouro e de prata. Os
convidados tomavam as bebidas em copos de ouro, todos eles diferentes uns dos
outros, e o rei mandou que o seu vinho fosse servido à vontade. A rainha Vasti
também ofereceu no palácio real um banquete para todas as mulheres dos
convidados.
No sétimo dia de banquetes o rei já havia bebido
bastante vinho e estava muito alegre. Aí ele mandou chamar os sete eunucos que
eram os seus servidores particulares. O rei ordenou que eles fossem buscar a
rainha Vasti e que ela viesse com a coroa de rainha na cabeça. Ela era muito
bonita, e o rei queria que os nobres e os outros convidados admirassem a sua
beleza. Mas a rainha não atendeu à ordem do rei, e por isso ele ficou furioso.
Mais tarde a raiva do rei já havia passado, mas mesmo
assim ele continuava a pensar no que Vasti havia feito e no decreto que ele
havia assinado contra ela. Aí alguns dos seus servidores mais íntimos lhe
disseram: - Rei, mande buscar as mais lindas virgens do reino. Escolha
funcionários em todas as províncias e ordene que tragam as moças mais bonitas
para o seu harém aqui em Susa, a capital. Egeu, o eunuco responsável pelo harém
real, tomará conta delas e fará que recebam um tratamento de beleza. E então, ó
Rei, que a moça que mais lhe agradar seja a rainha no lugar de Vasti. O rei
gostou da ideia e fez o que lhe sugeriram.
Em Susa morava um judeu chamado Mardoqueu, filho de
Jair e descendente de Simei e de Quis, da tribo de Benjamim. Quando o rei
Nabucodonosor, da Babilônia, levou de Jerusalém como prisioneiro o rei Joaquim,
de Judá, Mardoqueu estava entre os prisioneiros que foram levados com Joaquim. Mardoqueu
levou consigo a sua prima Ester, uma moça bonita e formosa. Os pais dela tinham
morrido, e Mardoqueu havia adotado a menina e a tinha criado como se ela fosse
sua filha.
Quando o rei mandou anunciar a ordem, muitas moças
foram levadas para Susa, a capital, e entregues aos cuidados de Egeu, o chefe
do harém do palácio. Uma dessas moças era Ester. Egeu gostou dela, e ela
conquistou a simpatia dele. Imediatamente ele começou a providenciar para ela o
tratamento de beleza e a comida especial. Arranjou sete das melhores empregadas
do palácio para cuidarem dela e colocou Ester e as empregadas nos melhores
quartos do harém.
Ester fez conforme Mardoqueu tinha mandado e não disse
nada a ninguém a respeito da sua raça e dos seus parentes. Todos os dias Mardoqueu
passeava em frente do pátio do harém para saber como Ester estava passando e o
que ia acontecer com ela. O tratamento de beleza das moças durava um ano;
durante seis meses perfumes de mirra e, no resto do ano, outros perfumes e
produtos de beleza.
Terminado o tratamento, cada moça era levada ao rei Assuero.
Quando chegava a sua vez de ir do harém até o palácio, cada moça tinha o
direito de levar tudo o que quisesse. À tarde ela ia ao palácio e na manhã
seguinte ia para outro harém e era entregue aos cuidados de Sasagaz, o eunuco
responsável pelas concubinas do rei. Ela não voltava a se encontrar com o rei,
a não ser que ele gostasse dela e mandasse chamá-la pelo nome.
Chegou a vez de Ester, filha de Abiail e prima de Mardoqueu,
a moça que Mardoqueu tinha criado, a moça que conquistava a simpatia de todos
os que a conheciam. Quando chegou a sua vez de se encontrar com o rei, ela
levou somente aquilo que Egeu, o eunuco responsável pelo harém, havia
recomendado.
Ester foi levada ao palácio para apresentar-se ao rei Assuero
no mês de tebete, o décimo mês do sétimo ano do seu reinado. Ele gostou dela
mais do que de qualquer outra moça, e ela conquistou a simpatia e a admiração
dele como nenhuma outra havia feito. Ele colocou a coroa na cabeça dela e a fez
rainha no lugar de Vasti. Depois ele deu um grande banquete em honra de Ester e
convidou todos os oficiais e servidores. Ele decretou que aquele dia fosse
feriado no reino inteiro e distribuiu presentes que só um rei poderia oferecer.
Assim, Ester, mulher de rara beleza, graça e
feminilidade, tornou-se rainha no palácio do opressor. E aconteceu que, mais
tarde, o primeiro-ministro do rei Assuero, Amã, sugeriu ao rei que fosse
decretado o fim do povo judeu que vivia no império, dizendo-lhe: “Há um povo
espalhado por todas as províncias de teu reino, separado entre os povos e
obedecendo a leis estranhas, que os outros não conhecem, e que além disso
despreza o decreto do rei. Não convém que o rei os deixe tranquilos” (3,8). E
assim aconteceu: o rei concordou e autorizou Amã a executar a sua sentença, que
rezava: “No dia treze do décimo segundo mês, o mês de Adar, todos os judeus
sejam aniquilados e confiscados os seus bens” (3,13). O dia previsto foi
escolhido por meio da sorte lançada diante do rei. Ester, sabedora dessa
realidade, ofereceu um banquete ao rei Assuero (cf. 7), no qual estava também
presente o malvado Amã. Já tomado pelo vinho, o rei, quando
viu Ester na sua presença, lhe perguntou com agrado o que lhe vinha pedir: Qual
é o teu pedido? Respondeu-lhe a rainha: Meu rei, se em algum tempo achei graça
aos teus olhos, concede-me a vida – é o meu pedido – e a vida do meu povo – é o
meu desejo (7,3). E Assuero a ouviu e atendeu, ordenando logo que se revogasse
a sentença. O rei não só realizou seu desejo, como também mandou
enforcar Amã (cf. 7,10).
Santo Afonso Maria de Ligório nos diz que se Assuero, por amor a Ester,
lhe concedeu a salvação dos judeus; como poderá, então, Deus, cujo amor por
Maria é sem medida, deixar de ouvi-la quando pede pelos pobres pecadores, que a
ela se recomendam?
|
Nossa Senhora das Estrelas - Pe. Renato, SJ |
Ester foi mulher de grande fidelidade porque nunca esqueceu seu povo e
seu Deus. Mesma tornando-se Rainha de um povo com cultura e práticas religiosas
diferentes das suas, Ester optou por permanecer fiel às suas origens, temente a
Deus e cumpridora de Seus mandamentos. A Bíblia sentencia que sua fidelidade
era tamanha afirmando que “Ester não mudou de conduta” (Est 2,20).
A Virgem Maria, de forma ainda mais perfeita, foi mulher de grande
fidelidade. É invocada sob o título de Virgem
Fiel porque permaneceu perseverante ao seu Filho até o fim. Esteve de
Belém, na infância, quando adulto e pregador itinerante, até a Cruz com Ele...
e além!
A fidelidade faz parte da vocação batismal, isto é, todo cristão é
chamado a ser fiel a Cristo. A fidelidade de Ester, de Maria e de todos os
batizados não é outra coisa se não resposta à fidelidade de Deus. O Catecismo da Igreja Católica n. 207 diz
que “ao revelar o seu nome, Deus revela ao mesmo tempo a sua fidelidade, que é
de sempre e para sempre, válida tanto para o passado (“Eu sou o Deus de teu pai”
Ex 3,6), como para o futuro (“Eu estarei contigo” Ex 3,12). Deus, que revela o
seu nome como sendo “Eu sou”, revela-Se como o Deus que está sempre presente
junto do seu povo para o salvar”. Deus é fiel conosco e por isso, somos
vocacionados a ser fiéis a Ele.
A fidelidade possui três dimensões:
|
ESTER
|
MARIA
|
BATIZADOS
|
Busca
|
Acorria
ao Senhor com orações (Est 14) e jejuns (Est 4,16) quando precisava discernir
e tomar decisões
|
Se pôs
a buscar o sentido profundo do Desígnio de Deus n’Ela e para o mundo “Como
poderá ser?” (Lc 1,34), perguntou Ela ao Anjo da Anunciação
|
Conhecimento
de si, e da vontade de Deus para a própria vida
|
Acolhimento
|
Acolhe
com docilidade os conselhos de Mardoqueu (Est 2,19) e de Egeu (Est 2,15),
usando de sabedoria para conquistar o rei e enfrentar os desafios da vida na
corte
|
A
aceitação: “Eis aqui a serva do Senhor, que sua Palavra se cumpra em mim!”
(Lc 1, 38)
|
Acolher
as pessoas e as situações da vida como oportunidades para em tudo amar e
servir
|
Coerência
|
Intercedeu
junto ao rei pelo seu povo, não se esquecendo de suas raízes (cf. Est 7,3) –
“Ester não mudou de conduta” (Est 2,20)
|
É a
perfeita discípula missionária – “Primeira cristã”
|
Viver de acordo com o que se crê. Ajustar a
própria vida à fé que se tem adesão
|
Ester, com a sua atitude, passou para a história como
símbolo de fidelidade, de resistência e de fé. Ela libertou o povo oprimido,
devolvendo a esperança e a alegria a seu povo, que, com pavor, esperava o dia
da morte. Como ensina o Catecismo da
Igreja Católica n. 64: “Serão sobretudo os pobres e os humildes do Senhor os
portadores desta esperança. As mulheres santas como Sara, Rebeca, Raquel, Míriam,
Débora, Ana, Judite e Ester
conservaram viva a esperança da salvação de Israel. Maria é a imagem puríssima
desta esperança”. Com Maria podemos aprender como viver a virtude da fidelidade.