O Governo de Portugal determinou
que todos os imigrantes com pedidos de autorização de residência
pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) passem a estar em
situação regular e a ter acesso aos mesmos direitos que todos os outros
cidadãos, incluindo apoios sociais e serviços de saúde. A medida foi divulgada
no último dia 28 de março em meio à crise pandêmica de Covid19[1].
A necessidade de uma resposta
urgente para a situação dos imigrantes afrouxou a tradicional burocracia. Com
menos papelada, os processos foram agilizados. Convém dizer que ao optar por
acolher seus “novos cidadãos”, o governo português deu uma resposta humanitária
para a situação.
Acolher “sem olhar
a quem”, como atitude humanitária e cristã, é um gesto recorrente no ensinamento
de Jesus nos Evangelhos. O Samaritano acolhe e cuida da pessoa
ferida que encontra pelo caminho, mesmo sem saber quem ela é (cf. Lc 10,25-37).
Também o pai misericordioso acolhe e oferece misericórdia ao seu
filho que estava perdido, sem inquirir sobre o seu passado pecador (cf. Lc 15,11-32).
São gestos gratuitos.
Não faz muito
tempo, o papa Francisco despertava a Igreja inteira para essa atitude tão
fundamental na vida e missão da Igreja quando promulgava o Ano Santo Extraordinário
da Misericórdia. Durante o jubileu, o pontífice parecia ainda insistir na necessidade
de desburocratização, de simplificação e gratuidade dentro da Igreja: “É necessário
reconhecer que, se uma parte do nosso povo batizado não sente a sua pertença à
Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco
acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática
com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos
povos” (Evangelii Gaudium, n.40). Francisco reiterava que “a Igreja não é
uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida
fadigosa” (Evangelii Gaudium, n.47; Amoris Laetitia, n.310).
O ano Santo da Misericórdia de 2015-2016,
na esteira de outros anos santos, também incluía um referimento as indulgências
(cf. Misericordiae Vultus).
Ora, a compreensão clássica das
indulgências está embrenhada no meio de não pouco catoliquês. Para
entender a mecânica das indulgências, é preciso conhecer com clareza o dogma da
Comunhão dos Santos, a doutrina tradicional da escatologia católica (Céu,
Inferno e Purgatório), a catequese e prática do sacramento da Confissão (Reconciliação),
e então, e só então, a doutrina das indulgências. Com efeito, a história e o
significado das indulgências são marcados pela contradição. O conflito entre
Martinho Lutero e a Igreja Católica, por exemplo, envolve a prática das indulgências.
O próprio papa Leão X, ao condenar a Reforma de Lutero na bula Exsurge Domine,
reconhece os erros da Igreja sobre essa prática. No Concílio Vaticano II, havia
quem opinava a favor da supressão de sua prática.
Mas coube a São Paulo VI tentar encontrar
uma saída saudável e moderna para essa doutrina. Seus esforços estão contidos
no documento Indulgentiarum Doctrina. Montini buscou simplificar um pouco
as coisas. Excluiu, por exemplo, a lógica dos dias de perdão de purgatório que
se podia lucrar com as indulgências. A Igreja passou a falar apenas de
indulgência plenária (uma espécie de liquidação completa das penas dos pecados)
e de indulgência parcial (a quitação de uma parcela do saldo de pena dos
pecados, mas de forma não mensurável ou tangível tão precisa como antes).
Não obstante, o papa Paulo VI derrapava
ainda no ensinamento de que o acesso ao Céu só se dava depois do completo
acerto de contas das penas dos pecados perdoados. Mesmo desburocratizada, a alfândega
permanecia. As indulgências funcionavam ainda como uma proposta de cumprimento de
certas práticas piedosas com o interesse de lucrar a remissão das penas e ganhar
o tão almejado green-card do Céu para si ou para os falecidos. Nessa lógica,
a Igreja, gerenciadora competente para autorizar a “Ficha Limpa” do fiel, estabelece
as condições para o “visa ok” do passaporte da beatitude eterna.
De qualquer forma,
na prática pastoral, o exercício das indulgências foi prudentemente desestimulado
apesar da promulgação do documento Enchiridion Indulgentiarum.
Nesse tempo da
crise pandêmica de Covid19 que atingiu de forma grave também a Itália, a Penitencial
Apostólica – órgão do Vaticano responsável pelas indulgências - emitiu um
decreto no dia 19 de março concedendo
indulgências especiais “aos fiéis atingidos pela Covid-19, em geral conhecida
como Coronavírus, assim como aos profissionais da saúde, aos familiares e a
todos aqueles que cuidam deles de qualquer maneira, inclusive através da oração[2]”.
Como se vê, os destinatários do decreto são muitos. Abrangência
dos envolvidos, flexibilização das condições e empatia com os que mais sofrem
com a pandemia são traços de desburocratização do acesso a Deus. O movimento de
desburocratização e simplificação da reconciliação do ser humano com Deus
proposta pela Igreja levaram a própria Penitenciária a recordar a possibilidade
dos fiéis acertarem as contas diretamente com Deus, mesmo sem a confissão e
absolvição sacramental. Afinal de contas, nesse tempo de quarentena, a prática católica
viu-se gravemente prejudicada. A gratuidade e a infinitude do alcance da Misericórdia
de Deus ficam assim mais visíveis.
O próprio papa Francisco, por conta da pandemia, concedeu a extraordinária
benção Urbi et Orbi com indulgência plenária para todos os que
acompanharam o momento. O seu gesto foi acolhido pela humanidade inteira como comovente
e consolador, mesmo pelos que não tinham interesse ou clareza sobre a indulgência
envolvida; Diga-se a verdade: a maioria dos católicos que rezaram com o papa.
Durante essa
crise, o medo da morte e a sensação de um fim próximo, criam um ambiente
favorável para uma tentação muito real: se concentrar na vaga de uma recompensa
de vida após a morte, ao invés de viver plenamente, com as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje (cf. Gaudium
et Spes).
A pandemia do
Coronavirus nos apela a escolher pela vida (Cf. Dt 30,19). Todos nós, a
humanidade inteira, estamos diante da oportunidade de exercer compaixão, de crescer
em fé, de agir com bondade, de redescobrir o amor e a alegria do que é simples
e essencial na vida. Não é hora de nos burocratizarmos em rituais
institucionais (ao vivo ou pela internet) para ganhar a entrada no Céu através de
alguns portões de alfândega sagrada. Portões esses que não são os de isolamento
social que somos chamados a fazer (#FiqueEmCasa), mas portões que nos isolam da
realidade.
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