Sentado à mureta olhava as ondas
do mar açoitarem os rochedos da praia. Era até confortável permanecer por ali,
em cima do muro. Mas a sola dos pés experimentavam um vento que acariciava
liberdade inquieta, como criança que balança as pernas sem tocar o chão. Em
cima do muro, sem chão e com desejos que borbulhavam a cada nova onda que
quebrava nas pedras. Fez-se silêncio no restante do mundo inteiro. Só era
possível ouvir o estrondo brutal das águas lambendo aquelas rochas impassíveis.
Quanta força naquelas ondas! O que as agitam dessa maneira? E nesse instante, o
sangue é água do mar; e uma enseada de pensamentos é cuspida pelo oceano de
sentimentos que nadam à braçadas na interioridade. E tudo que mais se quer é
sair de cima do muro, pular água adentro e unir-se ao arrebentar da maré. Quanta
estupidez! Todo aquele exagero de força batendo nas rochas e... nada, as pedras
continuam lá, em suas firmezas. E as águas voltam a insistir outra vez. Que
desperdício! Ninguém precisa de sua força inútil! Então Stuart Mill estava
certo e as coisas valem pelo utilitarismo que elas têm? E amar é útil? E ser
amado é útil?
Desci do muro e fui para o
hospital da Irmã Dulce colhendo conchas...colchas de retalhos para costurar a
minha humanidade. Usei lençóis azuis, todos eles repetidos e com a mesma frase
bordada: ”Obras Sociais Irmã Dulce”. Em cada retalho um pedaço rasgado e amado
de vida.
“Tudo que vai com Deus e com fé,
vai bem”, repetia Santa Dulce dos Pobres, enquanto nos olhava numa presença que
não sei explicar, mas sentia.
No jardim do hospital, gente de
nome florido que na flor da idade tinha uma filha que no botão da idade já
tinha desabrochado outra criança que perdera o pai assassinado naqueles dias.
Nesse canteiro, o espinho é o câncer. Mas esse jardim de mulheres e homens
teima em primaverar. Quanta força nessa maré! Qual a fonte que agita esse
oceano de garra?
Passei uma semana aí colhendo
dores de um sofrimento imerecido, dilacerante e injusto. Protesto! Por que
aquelas pessoas sofrem tanto? Por que o sofrimento? E não houve resposta que
cala-se a dor. 93 anos é idade de fazer quimioterapia? Família é coisa que dá
vontade para viver. Solidão é coisa que dá vontade de morrer. Você tem medo da
morte? Sussurra uma voz carente de afago. Me deixe em paz a senhora e o diabo
das suas perguntas! Não quero dizer o que sinto. Não dou meus porcos famintos
para comer as pérolas alheias. Lanço meus porcos precipício abaixo, mar adentro
para que se calem. Protejo as suas pérolas. Engulo solenemente cada detalhe de
sua história. Escuto atentamente. Amo-te com a presença do olhar. Mas “os olhos
mentem a dor da gente”, canta o poeta. Na verdade, os olhos gritam. O olhar
entrega e se entrega no anseio de colo e de força. Que desperdício de força nessa
torrente d´agua que bate às pedras da praia. Para que essa força? Amar é útil?
Quando o olhar lhe disser que está com medo, mesmo que a boca diga o contrário,
ame mesmo... e ame com força! O amor é resposta generosa ao sofrimento. E peque
sem matéria contra a tradicional castidade: Beije os corpos que encontrar no
jardim do paraíso hospitalar. Ame e deixe-se amar com coragem e generosidade.
Na brisa leve das manhã e nas
tardes sôfregas de Salvador, passeei no jardim da oncologia para encontrar o
Cristo que quer vida em abundância.
Eu quis gritar e eu gritei. Eu
quis sair correndo, e Deus sabe como eu tenho corrido. Eu quis enfrentar o
oceano e mudar o curso da vida de tantos. Mas eu não pude: caí de joelhos na
areia, choroso, vencido, entregue, dependente, calado. Que não seja feita a
minha vontade. Mas isso não significa que não era possível fazer algo! É sempre
possível amar...porque as águas do mar sempre voltarão a se lançar com
intensidade sobre as rochas da praia. E eu voltei ao hospital.
Lá, me encontrei com Cristo Rei,
Senhor em sua Glória, o Poderoso do Universo. Sua presença era nobre e viva.
Ele mão estava velado, eu via-O claramente. Ele é um só, mas estava em muitos.
Estava sentado, Eternamente sentado em seu trono glorioso. Tronos ladeados por
duas rodas que eram movidas pela necessária ajuda de mãos humanas. Fico
imaginando que Glória é essa que a gente celebra... só pode ser essa, a Glória
de ser com os Seus e tocar a roda da vida.
Ouvia-se línguas estranhas. Eram
idiomas que reverberavam numa lógica distinta do português e de outros dialetos
conhecidos. Expressões comunicativas mais civilizadas: o toque, o olhar, um
barulho. Anunciavam afeto, idioma que às vezes fingimos não saber falar.
Geriatria, enfermaria, centro para pessoas com deficiência. Ternura. A energia
daquelas águas que banhavam as pedras praianas era inesgotável. Impressionante.
“Eu não sou alcoólatra, um
cachaceiro. Eu sou uma pessoa só, sem ajuda. Eu sou um dependente”. “Eu sou o
remédio da minha mulher. Se eu pudesse morava aqui no hospital. Fiquei 5 dias
fora e ela piorou. Como eu poderia abandonar uma mulher cm quem vivi 33 anos
juntos?”. “E quem diz que tudo isso começou de um galinheiro. É um milagre, o
milagre da multiplicação do bem”. “Eu quero ir para casa”.
Aberto o livro de rituais, lia-se
o curandeirismo: ”e debelada toda a enfermidade seja restabelecida
completamente a saúde...”. Incredível. Mentira. Faltou fé. O doente não tocado
anunciava a renovação do ciclo da vida. Rezou-se no lugar: “Conceda-lhe
consolação e força Senhor”. Amém! Força? Você já olhou o mar a noite? O céu e o
mar não têm distinção. Ambos são uma imensidão de horizonte azul escuro de
pontos brilhantes que você pode chamar de estrelas ou de barcos, tanto faz,
tudo é uno diziam os pré-socráticos e os medievais. E em tudo há movimento.
Parece brincadeira tudo isso.
Cenoura e vassoura: brincadeiras de um espetáculo gaiato. Cenoura é microfone.
Vassoura é cetro real. E eu não ousaria discordar de crianças no hospital.
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