quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Ondas do Hospital Irmã Dulce


Sentado à mureta olhava as ondas do mar açoitarem os rochedos da praia. Era até confortável permanecer por ali, em cima do muro. Mas a sola dos pés experimentavam um vento que acariciava liberdade inquieta, como criança que balança as pernas sem tocar o chão. Em cima do muro, sem chão e com desejos que borbulhavam a cada nova onda que quebrava nas pedras. Fez-se silêncio no restante do mundo inteiro. Só era possível ouvir o estrondo brutal das águas lambendo aquelas rochas impassíveis. Quanta força naquelas ondas! O que as agitam dessa maneira? E nesse instante, o sangue é água do mar; e uma enseada de pensamentos é cuspida pelo oceano de sentimentos que nadam à braçadas na interioridade. E tudo que mais se quer é sair de cima do muro, pular água adentro e unir-se ao arrebentar da maré. Quanta estupidez! Todo aquele exagero de força batendo nas rochas e... nada, as pedras continuam lá, em suas firmezas. E as águas voltam a insistir outra vez. Que desperdício! Ninguém precisa de sua força inútil! Então Stuart Mill estava certo e as coisas valem pelo utilitarismo que elas têm? E amar é útil? E ser amado é útil?
Desci do muro e fui para o hospital da Irmã Dulce colhendo conchas...colchas de retalhos para costurar a minha humanidade. Usei lençóis azuis, todos eles repetidos e com a mesma frase bordada: ”Obras Sociais Irmã Dulce”. Em cada retalho um pedaço rasgado e amado de vida.
“Tudo que vai com Deus e com fé, vai bem”, repetia Santa Dulce dos Pobres, enquanto nos olhava numa presença que não sei explicar, mas sentia.
No jardim do hospital, gente de nome florido que na flor da idade tinha uma filha que no botão da idade já tinha desabrochado outra criança que perdera o pai assassinado naqueles dias. Nesse canteiro, o espinho é o câncer. Mas esse jardim de mulheres e homens teima em primaverar. Quanta força nessa maré! Qual a fonte que agita esse oceano de garra?
Passei uma semana aí colhendo dores de um sofrimento imerecido, dilacerante e injusto. Protesto! Por que aquelas pessoas sofrem tanto? Por que o sofrimento? E não houve resposta que cala-se a dor. 93 anos é idade de fazer quimioterapia? Família é coisa que dá vontade para viver. Solidão é coisa que dá vontade de morrer. Você tem medo da morte? Sussurra uma voz carente de afago. Me deixe em paz a senhora e o diabo das suas perguntas! Não quero dizer o que sinto. Não dou meus porcos famintos para comer as pérolas alheias. Lanço meus porcos precipício abaixo, mar adentro para que se calem. Protejo as suas pérolas. Engulo solenemente cada detalhe de sua história. Escuto atentamente. Amo-te com a presença do olhar. Mas “os olhos mentem a dor da gente”, canta o poeta. Na verdade, os olhos gritam. O olhar entrega e se entrega no anseio de colo e de força. Que desperdício de força nessa torrente d´agua que bate às pedras da praia. Para que essa força? Amar é útil? Quando o olhar lhe disser que está com medo, mesmo que a boca diga o contrário, ame mesmo... e ame com força! O amor é resposta generosa ao sofrimento. E peque sem matéria contra a tradicional castidade: Beije os corpos que encontrar no jardim do paraíso hospitalar. Ame e deixe-se amar com coragem e generosidade.
Na brisa leve das manhã e nas tardes sôfregas de Salvador, passeei no jardim da oncologia para encontrar o Cristo que quer vida em abundância.
Eu quis gritar e eu gritei. Eu quis sair correndo, e Deus sabe como eu tenho corrido. Eu quis enfrentar o oceano e mudar o curso da vida de tantos. Mas eu não pude: caí de joelhos na areia, choroso, vencido, entregue, dependente, calado. Que não seja feita a minha vontade. Mas isso não significa que não era possível fazer algo! É sempre possível amar...porque as águas do mar sempre voltarão a se lançar com intensidade sobre as rochas da praia. E eu voltei ao hospital.
Lá, me encontrei com Cristo Rei, Senhor em sua Glória, o Poderoso do Universo. Sua presença era nobre e viva. Ele mão estava velado, eu via-O claramente. Ele é um só, mas estava em muitos. Estava sentado, Eternamente sentado em seu trono glorioso. Tronos ladeados por duas rodas que eram movidas pela necessária ajuda de mãos humanas. Fico imaginando que Glória é essa que a gente celebra... só pode ser essa, a Glória de ser com os Seus e tocar a roda da vida.
Ouvia-se línguas estranhas. Eram idiomas que reverberavam numa lógica distinta do português e de outros dialetos conhecidos. Expressões comunicativas mais civilizadas: o toque, o olhar, um barulho. Anunciavam afeto, idioma que às vezes fingimos não saber falar. Geriatria, enfermaria, centro para pessoas com deficiência. Ternura. A energia daquelas águas que banhavam as pedras praianas era inesgotável. Impressionante.
“Eu não sou alcoólatra, um cachaceiro. Eu sou uma pessoa só, sem ajuda. Eu sou um dependente”. “Eu sou o remédio da minha mulher. Se eu pudesse morava aqui no hospital. Fiquei 5 dias fora e ela piorou. Como eu poderia abandonar uma mulher cm quem vivi 33 anos juntos?”. “E quem diz que tudo isso começou de um galinheiro. É um milagre, o milagre da multiplicação do bem”. “Eu quero ir para casa”.
Aberto o livro de rituais, lia-se o curandeirismo: ”e debelada toda a enfermidade seja restabelecida completamente a saúde...”. Incredível. Mentira. Faltou fé. O doente não tocado anunciava a renovação do ciclo da vida. Rezou-se no lugar: “Conceda-lhe consolação e força Senhor”. Amém! Força? Você já olhou o mar a noite? O céu e o mar não têm distinção. Ambos são uma imensidão de horizonte azul escuro de pontos brilhantes que você pode chamar de estrelas ou de barcos, tanto faz, tudo é uno diziam os pré-socráticos e os medievais. E em tudo há movimento.
Parece brincadeira tudo isso. Cenoura e vassoura: brincadeiras de um espetáculo gaiato. Cenoura é microfone. Vassoura é cetro real. E eu não ousaria discordar de crianças no hospital.


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